O
Caráter Ideológico da Dogmática Jurídica e do Ensino Jurídico: “A Lei Foi Feita
Para ser Cumprida?” E, se assim fora, “O Que a Faz Muitas Vezes, Inaplicável e
Ineficaz?”.*
. Por:
Luís Moisés Ribeiro, Bacharelando em Direito, 5ª Semestre,
Turma “
“A dogmática e ensino
jurídico: o dito e o não dito do sentido comum teórico – o universo do silêncio
(eloqüente) do imaginário dos juristas”. “Que tipo de visão têm
os operadores jurídicos sobre a aplicação e a eficácia das leis existentes no
Brasil?”.
Comumente percebe-se que as
leis nem sempre produzem seus efeitos de aplicabilidade e eficácia no seio
social a que estão voltadas desde sua elaboração. Muito menos no meio daqueles
que circundam, dia a dia, a lei e seus trâmites, diplomas. Mesmo que entre a
elaboração e a obrigatoriedade das leis não compreenda uma expectativa acertada
no âmbito da completude em relação a todos os indivíduos, pessoas que a lei
imputa seu caráter valorativo, coercitivo, intimidatório e conservador, que se
submetem à observância, temor e respeito às leis expostas. Principalmente e com
certa exclusividade, direciona-se à aplicabilidade e eficácia das leis vigentes
no Brasil, com mais primazia, aos olhos daqueles que cotidianamente as opera,
exprime, explicita e as fazem muitas vezes existir. Vagarosamente questiona-se:
“A lei foi feita para ser cumprida?”, esta pergunta suscita tantas outras como
a que primeiro se evidencia nas primeiras linhas desta matéria.
Com
efeito, e certa lógica, está condicionada, à lei e sua garantia de caráter
conservador, bem como também se exige que a lei, uma vez imposta, seja capaz de
tornar-se material, por meio do preceito dogmático e revelador da própria
eficiência e justeza, para não invocar justiça, a que a lei busca primariamente
exaltar, contra ou a favor dos súditos às leis submetidos,
é de se considerar que nem sempre os “dois pesos e duas medidas” justas, se
adaptam, e que “João e Chico” não são iguais, embora sejam irmãos e que também,
cada “caso é um caso” e para “uns” certos privilégios são dados pela própria
legislação como espécie de inimputabilidade ou recurso, enquanto a “outros” a
lei, deve e precisa ser cumprida “tal e qual” está escrita. Não valendo, assim,
para que por detrás do seu caráter ideológico, pessoas possam esconder-se e, no
entanto, servindo de amparo para os suspeitosamente conhecidos como “imputáveis”, por ocasião de espaços ou brechas, lacunas que
a própria legislação venha conter.
Sendo
assim, o que diria então aqueles vigorosos homens que admitiam a lei do talião:
“olho por olho e dente por dente”, se Roma ainda fosse a matriz legisladora dos
diplomas legais, em nossos dias, onde se arranca um olho e se paga com um dente
e ou vice-versa, dependendo do agente, do ato ou da omissão, assim como da
própria legislação vigorante e vigente, sob o infrator e sobre a ação? Por
essas e outras assertivas, refletem os operadores do direito sobre o que
podemos analisar de um composto e recheado ângulo, de liberdade e pesquisa: “A
dogmática e o ensino jurídico”. Do ponto de vista hermenêutico: “o dito e o não
dito...” ou melhor: “o universo do silêncio...”.
Por
exemplo, um funcionário público de alto escalão engaveta um processo
(administrativo ou judicial) durante três ou quatro anos. Dentro dos cânones
estabelecidos pela dogmática jurídica, para processá-lo pelo crime de
prevaricação, é muito difícil, em face da exigência do dolo, uma vez que o
“legislador” não previu a hipótese de prevaricação culposa. Desse modo, se o
acusado alegar, em sua defesa, que “o processo ficou parado tanto tempo”
porque foi preguiçoso, desleixado ou até mesmo negligente, fatalmente será
absolvido (isto no caso de chegar a ser denunciado e a denuncia ser recebida).
Tudo
porque a preguiça, a negligência ou o desleixo são considerados causas (sic)
que excluem o dolo (aliás, como se diria na dogmática tradicional, “nesse
sentido a jurisprudência é mansa e pacífica”: RT 451/414; 486/356; 565/334;
543/342...). Exige-se, ao que parece, uma espécie de “dolo de engavetamento”.
Como
contraponto, veja o caso de um indivíduo que furta uma galinha e a leva para
casa. Neste caso, basta que com ela (com a resfurtiva) fique alguns minutos, para que, sendo preso, esteja
caracterizado o crime de furto (cuja pena, aliás, é várias vezes maior do
que a da prevaricação). Isto porque “nessa linha existe copiosa
jurisprudência”, dando conta de que “o furto atinge a consumação no
momento em que o objeto material é retirado da esfera de posse e
disponibilidade do sujeito passivo, ingressando na livre disponibilidade do
autor, ainda que este não obtenha a posse tranqüila”.
Evidentemente,
estes exemplos apontam apenas em direção à ponta do iceberg. Paradoxos
como estes deveriam colocar em xeque a dogmática jurídica, chamando a atenção
dos juristas para a crise”.
Aponta-se
em consciente observância que a hermenêutica jurídica tem à frente um
obstáculo, senão um “temporal”, conflitante com a sua parte ideal da
interpretação. Ao aplicar uma lei, o que pensa o magistrado? Como a interpreta
e a faz ser eficaz ou não, tornando-a satisfatória?.
Coerência
não há em tentar subtrair do pensamento de um juiz, o correto interpretar em
relação à letra fria da lei e a severa, muitas vezes, outras até que não,
vontade da lei, que se revela, autêntica, gramatical,
teleológica, omissa ou oculta. Sobretudo há de se elevar a mais ampla e
possível interpretação da lei; a literal, que por sua vez demonstra total
afinidade com a arte da interpretação versus persuasão. Objetivando ou não
controlar a hermenêutica, a crise mostra-se cada vez mais desafiante e
avassaladora.
Um
caminho especulativo e expectante é o de se aproveitar uma geração concebida do
“saber jurídico” contemporâneo. São muitos os estudantes, porém poucos
estudiosos, que se volvem aos livros e doutrinas, que exalam incomodar a
garantia, pelo menos formal do “paradoxo” entre o “saber”. É só pensar que o
funil tem uma boca enorme, mas passa pela sua
“garganta” apenas alguns selecionados.
Porém
é preciso, questionar se faz necessário quanto ao que de fato se tem dito nos
estabelecimentos que se propõem a ensinar “direito” e aos alunos que
academicamente se dispõe a aprender “direito”. Diante de tanta discussão entre
as escalas mais baixas, médias e altas do “saber jurídico-dogmático” é
sustentável a conversação entre os alunos, professores, doutrinadores,
operadores ou até mesmo simpatizantes e acompanhantes do direito, avalia-se a
resposta desta geração quando em prática, tanto da hermenêutica, quanto da
aplicação desse aprendizado e a prática no sentido da operação apaixonante que
o direito contém. “Será que, de lá para cá, ocorrerão mudanças
significativas?”.
Não
surpreende, portanto, que, até poucos anos, alguns tribunais, avalizados por renomados
penalistas pátrios, ainda sustentavam, por exemplo, que o marido não podia ser
sujeito ativo de estupro cometido contra a esposa por “lhe caber um exercício
regular de um direito...”. Seguindo essa linha, alguns tribunais brindavam as
decisões jurídicas com decisões do tipo “... a cópula intramatrimônio é dever
recíproco dos cônjuges e aquele que usa de força física contra outro, a quem
não socorre recusa razoável (verbi gratia, moléstia, inclusive venérea,
ou cópula contra a ‘natureza’), tem por si a excludente de criminalidade
prevista no Código Penal – exercício regular de um direito” (RT 461-444).
Julgados
como esse se embasavam em doutrinadores como Nelson
Hungria, para quem “o marido violentador, salvo excesso inescusável, ficará
isento até mesmo da pena correspondente a violência física em si mesma”. Não se
olvide que o assim denominado “direito à conjunção carnal” é eufemisticamente
referido pelo Código Civil, na medida em que, no artigo 1.566, II, aponta como
dever dos cônjuges a “vida em comum, no domicílio conjugal”.
È
nesse dever que se “encontra incluído”, consoante Silvio Rodrigues, a de manter
relacionamento carnal. Tal tese civilista pode ter levado Damásio de Jesus,
expoente da doutrina penal, a um equívoco, eis que, ao comentar o artigo 213 do
Código Penal, assim pronuncia: “(A mulher) não perde o direito de dispor de seu
corpo, ou seja; o direito de se negar ao ato, desde que tal negativa não se
revista de caráter mesquinho. Assim, sempre que a mulher não consentir na
conjunção carnal, e o marido a obrigar ao ato, com violência ou grave ameaça,
em princípio caracterizar-se-á o crime de estupro, desde que ela tenha justa
causa para a negativa”. Deve-se frisar que, atualmente, os tribunais e a
doutrina já assimilaram conceitos mais modernos a respeito do tema, entendendo
que, em verdade, o marido que força a esposa à prática sexual não está
exercitando um direito, e sim, “abusando” de um direito...
Há,
porém, uma falta de nexo entre o que é dito nas salas de aulas, aos nossos
futuros ou ensaiantes operadores do direito, com o que eles próprios, alunos,
professores, doutrinadores, e pessoas da sociedade vivem e com aquilo que se
expressa na vida social
Um
conflito parece pairar, estabelecendo um desencontro entre o que é ensinado e o
que deveria ser aprendido, um desconto é vivenciado até mesmo na didática
utilizada para a formação desses alunos da nova, ou talvez atual, geração. Se
expressa aí uma crise? Somente não! Mas também uma “dificuldade da dogmática
jurídica em lidar com os fenômenos sociais. Vários fatores tiveram e têm
influência nessa problemática”.
“...
È preciso reconhecer que, nos dias atuais, quando se
fala em ciência do direito, no sentido do estudo que se processa nas faculdades
de direito, há uma tendência em identificá-la com um tipo de produção técnica,
apenas a atender às necessidades do profissional (o juiz, o promotor, o
advogado) no desempenho imediato de suas funções. Na verdade, nos últimos 100
anos, o jurista teórico, pela sua formação universitária, foi sendo conduzido a
esse tipo de especialização, fechada e formalista” (Ferraz Jr.).
Um
liberalismo ideológico caracterizado pela consciência dominante que embora
distante de uma visão efetiva, muito mais para a oposição, se verifica entre o
direito “saber, interpretar e entender o direito” e a sociedade – “o agir e
viver de forma direcionada ao direito”.
Será
que a ação, em primeira instância até chegar às últimas, em escala gradativa,
mostrando tais falhas e advertindo a “cultura jurídica” jamais se operará em
cisão para não agravar ainda mais a crise?
São
muitas as expectativas quanto à “Súmula Vinculante”. Muitos são os magistrados,
que proferem as suas decisões baseadas nelas.
Tramita,
porém, no Senado Federal, a Emenda Constitucional de Reforma do Poder
Judiciário, referindo-se quanto à validade dessas súmulas de efeito “erga
omnes”. Se não bastasse, que a própria administração pública estaria
obrigada em seguir, com rigor, as súmulas que o Supremo Tribunal Federal – STF emite, pelo seu efeito vinculante.
A
Adoção da Súmula Vinculante no Sistema Judicial Brasileiro é uma matéria tão
polêmica que merece uma análise mais profunda por todos os segmentos que
constroem o pensamento jurídico pátrio, bem como de todos os seus operadores.
Enfim,
analisar como essa crise demonstra o tipo de procedimentos, que são ignorados
nos contextos históricos e sociais dos quais estão inseridos os atores
jurídicos (acusado, vítima, juiz promotor, advogado, etc.), bem como não se
indaga (e tampouco se pesquisa) a circunstância da qual emergiu. Comecemos pela
própria ementa jurisprudencial utilizada.
Afinal
de contas, se “a jurisprudência torrencialmente vem decidindo que...”, ou “a
doutrina pacificamente entende que...” o que resta a fazer?.
Adiante,
é de se esperar uma crise na arte de interpretação das leis, a hermenêutica por
conseqüência está em crise e, por conseqüência, o “processo de interpretação da
lei passa a ser um jogo de cartas (re) marcadas” (Ferraz Jr., Bairros de Brum,
J.E. Faria e Warat).
É
uma ficção ainda crida a “vontade do legislador, o espírito do legislador, a
vontade de norma...”. Ainda assim destaca-se alguma característica desse
legislador, sendo ele “racional”, “singular”, “permanente”, “único”,
“consciente”, “finalista”, “justo”, “coerente”, “onicompreensivo”, “econômico”,
“operário”, “preciso”.
É
de se perguntar: “pode alguém, ainda, acreditar em tais ‘propriedades’ ou
‘características’ do legislador?”.
Pode-se
dizer que sim, confiando que, na desenvoltura e desenvolvimento da profissão,
ou operar de fato o direito, ao enveredar por normas e normas, aplicando a lei,
fazendo com que as “letras frias” legisladas saiam da matéria e sua substância
torne-se real, através da prática, realizando, criando meios, resolvendo
situações, litígios, desvendando os significados das palavras e dinamizando o
próprio direito, os operadores, juristas, magistrados se utilizem sempre do
meio que, de certo modo, lhes está mais acessível, tanto para interpretar a lei
como para torná-la, por meio da hermenêutica, real. Reto este, composto de “um
conjunto de crenças e práticas que, mascaradas e ocultas pela ‘communis
opinio doctorum’, propiciam que os juristas conheçam de modo confortável e
acrítico o significado das palavras, das categorias e das próprias atividades
jurídicas”.
Verifica-se
aí, citado pelos autores, um certo “tipo” e certo
“costume” ou hábito no âmbito profissional no modo com que empenham as
atividades jurídicas, os operadores e exercentes do direito, que, ao exercê-lo
com algum tipo de rotina, banalização, desprestígio e desvalor, escondem a
riqueza, brilho e beleza incontestável da arte de interpretação das leis. No
entanto, ressalta-se que, no entendimento da boa postura profissional e no
desenvolvimento coerente desta, “o direito é a disciplina na qual a autoridade
ainda conserva uma parte substancial de seu prestígio” (Guibourg).
Deriva-se
desse prestígio, merecido e a bom tempo, desde tempos anteriores, e até
hodiernamente, alguns dos elementos constitutivos da fonte do direito, como a
doutrina que leva ao direito uma fonte interpretativa, assim como o da
jurisprudência e o da própria lei. Isso porque as “interpretações” serão
usadas, no exercício das atividades jurídicas, pelos profissionais do autêntico
e eficaz direito...
É
relevante frisar, destarte, que toda esta problemática se forja no interior do
que se pode chamar de “establishment jurídico”, que atua de forma difusa,
buscando uma espécie de “uniformização de sentido”, que, segundo Bourdieu e
Passeron, tem uma relação direta com um fator normativo de poder, o poder de
violência simbólica. Trata-se do poder capaz de impor significações como
legítimas, dissimulando as relações de força que estão no fundamento da própria
força.
Aparece,
em meio ao hábito das práticas jurídicas, o chamado e tão desenvolvido
“arbitrário juridicamente prevalente”. Uma espécie demonstrativa do poder de
controle conservador, exercido pelos operadores da dogmática jurídica, amparada
pela própria desenvoltura das ações que empenham para fazer falar, dizer, ou
não dizer aquilo que a lei, em seu sentido ou espírito diz, ou pretende, ainda
que longe esteja dos autores jurídicos, imaginar o que
vai à mente do legislador antes ou na hora de elaborar as leis (mais
perfeitas), assim como a sua intenção e racionalidade ao elaborá-la.
É
dominante, porém, a doutrina de que, desse modo, toda vez que surge uma nova
lei, os operadores do direito, inseridos nesse “habitus” tão bem e amplamente
definido por Bourdieu – se tornam órfãos científicos, esperando que o processo
hermenêutico-dogmático lhe aponte o (correto) caminho, dizendo para eles o que
é que a lei diz (ou “quis dizer”)...
Mostra-se
a favor e com grandessíssimo valor a dogmática e o ensino jurídico, o sentido
comum teórico merecido e estimado, estabelecendo o universo do silêncio
(eloqüente) com grandes vistas ao imaginário dos juristas.
Vale
à pena demonstrar com a aplicabilidade e eficácia das leis, impondo
profissionalismo e buscando um ensino o mais perfeito possível, o valor
inestimável contido no direito e a autêntica autoridade de se fazer um bom
“hermeneuta”.
Salvador,
20 de maio de 2004.
* Artigo
solicitado pelo orientador da disciplina de Hermenêutica Jurídica, professor
Wagner Neto, como requisito avaliativo para a II Unidade do terceiro semestre
do curso. Fonte consultada: Hermenêutica e(m) Crise; LENIO, Luiz Streck.