DO EXCESSIVO CARÁTER ABERTO DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

 

 

Mauro Roberto Gomes de Mattos

Advogado no Rio de Janeiro. Autor dos Livros Lei 8.112/90 Interpretada e Comentada – Ed. América Jurídica, “O Limite da Improbidade Administrativa – O Direito dos Administrados dentro da Lei nº 8.429/92” –  Ed. América Jurídica e “O Contrato Administrativo” – 2ª Ed., Ed. América Jurídica.   Vice Presidente do Instituto Ibero Americano de Direito Público – IADP, Membro da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social, Membro do IFA – Internacional Fiscal Association. Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social.

 

 

I - IMPROBIDADE

 

A Lei de Improbidade Administrativa nasceu do Projeto de Lei nº. 1.446/91, enviado ao Congresso Nacional pelo então Presidente Fernando Collor de Mello, que necessitava dar um basta à onda de corrupção que assolava o País naquela época.

 

Motivado pelo princípio da moralidade, o Ministro da Justiça do citado governo, Jarbas Passarinho,[1] deixou registrado em sua Exposição de Motivos que o combate à corrupção era necessário, pois se trata de “uma das maiores mazelas que, infelizmente, ainda afligem o País”.

 

Sempre foi uma cultura nefasta em nosso país, como nos países da América do Sul, ver os homens públicos desrespeitando as suas funções pelos seus maus tratos à coisa pública, em prejuízo à coletividade. Ora, a corrupção atrasou muitos povos do nosso continente, que obtiveram dos políticos o retrocesso e a conduta desleal, em vez de zelarem pela boa e pura intenção dos seus atos.

 

A Lei de Improbidade Administrativa nasceu com a finalidade de combater atos que afetem a moralidade e maltratem a coisa pública.

 

Todavia, como a lei em comento possui comandos muito abertos, é necessário que haja uma certa prudência no ingresso de ações de improbidade administrativa, para que não seja enfraquecida e se torne impotente, vulgarizando-se pelo excesso da sua utilização, para os casos que não comportem o devido enquadramento.

 

            Isto porque, o comando legal em questão se preocupou apenas em definir os tipos da improbidade administrativa (arts. 9, 10 e 11), sem, contudo, definir o que venha a ser ato ímprobo.

 

            Ao deixar de definir o conteúdo jurídico do que venha a ser o ato de improbidade administrativa, a Lei nº 8.429/92 permitiu ao intérprete uma utilização ampla da ação de improbidade administrativa, gerando grandes equívocos, pois possibilitou que atos administrativos ilegais, instituídos sem má-fé, ou sem prejuízo ao ente público fossem confundidos com os tipos previstos na presente lei.

 

            Tal equívoco, como dito, é fruto da falta de uma definição jurídica do ato de improbidade administrativa, apresentando-se, portanto, como norma de conteúdo incompleto.[2]

 

            A lei em questão se assemelha com a norma penal em branco, cujo “aperfeiçoamento” fica por conta de quem interpreta ou aplica a lei de improbidade administrativa.

 

            Em direito penal, tem sido chamado de norma em branco, o que foi assinalado em primeiro lugar pelo jurista germânico Binding, para designar o comando legal que contém determinada sanção, “mas cujo preceito aparece incompleto devendo ser integrado através de outra lei.”[3]

 

            São “normas jurídicas não autônomas”, segundo Kelsen,[4], ou equivalente as proposições jurídicas incompletas, dita por Larenz,[5] extensiva, analogicamente, para a totalidade dos ramos do direito, mas também e não-somente para o direito penal.

 

            Para ter validade, a norma em branco necessita da integração legislativa de outro texto legal, para que não fique vaga e incompleta determinada conduta combatida pelo ordenamento jurídico. Ora, se a lei em debate deixa de grafar o que ela entende como ato de improbidade, partindo  dos seus três tipos, sem definir o conteúdo principal, não é difícil imaginar as graves e grandes injustiças que serão praticadas aos direitos dos agentes públicos, pois a interpretação da norma, nem sempre será a mais adequada, dado o seu inconcebível caráter de indefinição. A falta de explicitação da definição legislativa do ato de improbidade do agente público, gera um poder ilimitado de punição aos agentes públicos, mesmo que a conduta pública não contenha nenhuma devassidão ou má-fé no trato da coisa pública, relembrando as sábias palavras de Helmut Coing, citadas por Karl Larenz:[6] “todo poder de um hombre sobre otro hombre tiene que ser limitado. El poder ilimitado contradice el Derecho.” A vinculação a norma jurídica, a que alude o Estado Democrático de Direito, parte do pressuposto de que a norma legal será completa, não necessitando de esforço de interpretação ou da boa vontade do Administrador Público, visto que a conduta a ser repelida pelo texto legal deve estar claramente delineada, objetivamente que não ocorra excessiva discricionariedade na verificação do ato ímprobo.

 

            É o chamado direito justo considerado por Karl Larenz,[7] como “razonablemente consequente”, aquele que possui a proposição jurídica completa, resultante de uma clara definição dos critérios objetivos da proibição de determinada conduta do agente público.

 

            Para se extrair o real sentido da definição do ato de improbidade administrativa, a Lei nº 8.429/92 deveria ser bem elucidativa, definindo o seu conteúdo, de forma objetiva para após estabelecer os seus três tipos, que certamente estaria conjugado com a respectiva essência do ato ímprobo.

 

            Como há a respectiva carência, aguarda-se a providência de novo texto legislativo, com a finalidade de dar efetividade à falha legislativa já declinada, porque senão permanecerá aberto o caráter da norma.

 

            E assim porque “a segunda norma, através da qual o domínio de validade da primeira é limitado, é uma norma  não-autônoma. Aquela apenas faz sentido em combinação com esta. Ambas formam uma unidade.”[8]

 

            O dever de identificar com clareza e precisão os elementos definidores do ato de improbidade administrativa competia à Lei nº 8.429/92, que preferiu se omitir sobre tal questão, fixando apenas os seus três tipos.

 

            A acusação, desatenta, desatrelada de um mínimo de plausibilidade jurídica é possibilitada pelo caráter aberto da norma sub oculis, que preferiu não esclarecer o seu entendimento sobre o ato de improbidade administrativa.

 

            Tal qual o ato de tipificação penal, era dever indelegável da Lei nº 8.429/92 identificar com clareza e precisão, os elementos definidores da conduta de improbidade administrativa, para após fixar os seus tipos e as devidas sanções.

 

            A definição de improbidade administrativa não pode ser um “cheque em branco”, pois a segurança jurídica que permeia um Estado Democrático de Direito como o nosso não permite essa insegurança jurídica.

 

            Perfeita foi a síntese do Min. Celso de Mello em seu voto de Relator, pelo Plenário da Excelsa Corte, no processo de Extradição nº 633:[9]

 

“O ato de tipificação penal impõe ao Estado o dever de identificar com clareza e precisão, os elementos definidores da conduta delituosa. As normas de incriminação que desatendem essa exigência de objetividade – além de descumprirem a função de garantia que é inerente ao tipo penal – qualificam-se como expressão de um discurso normativo absoluto incompatível com a essência da norma dos princípios que estruturam o sistema penal no contexto dos regimes democráticos.” (g.n.)

           

            Mesmo focando o aspecto penal, o princípio pode ser aplicado subsidiariamente ao caso em comento, como já dito, pois uma norma penal em branco é tida como “um corpo errante sem alma”, assemelhando-se à Lei de Improbidade Administrativa que deixou de estabelecer, com clareza e precisão a definição jurídica da conduta ímproba, ficando a mesma sem conteúdo descritivo, o que eleva a possibilidade do manejamento indevido do número de ações deste tipo.

 

            Mais uma vez, louvando-se nas colocações do Min. Celso de Mello, extrai-se:[10]

 

“O reconhecimento da possibilidade de instituição de estruturas típicas flexíveis não confere ao Estado o poder de construir figuras penais com utilização, pelo legislador, de expressões ambíguas, vagas, imprecisas e indefinidas. É que o regime de indeterminação do tipo penal implica, em última análise, a própria subversão do postulado constitucional da reserva de lei, daí resultando, com efeito conseqüencial, imediato, o gravíssimo comprometimento do sistema das liberdades públicas.”

 

            Como a Lei de Improbidade Administrativa é infra-constitucional, concebida para dar efetividade ao art. 37, § 4º, da CF, ela possui o dever de permitir que todos os agentes públicos saibam, em primeiro lugar, qual é o ato tido como ímprobo, para após terem ciência dos seus tipos legais e das conseqüentes e graves sanções.

 

            Esse raciocínio legal deflui do princípio do due process of law (art. 5º, LIV, CF/88), capaz de evitar a aniquilação do princípio do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, CF/88) que repugna tal falha legislativa, capaz de propiciar a utilização  indevida de ações de improbidade administrativa.

 

            Partindo dos tipos, sem prescrever a conduta específica que estabelece o alcance do ato de improbidade administrativa, a Lei nº 8.429/92 se afigura ao que Karl Lanrenz denomina de “proposições jurídicas incompletas”[11] como vaga e imprecisa. Por isso é que deixamos nítido em nosso “Limite da Improbidade Administrativa – Direitos e Garantias dos Administrados dentro da Lei nº 8.429/92”, Ed. América Jurídica, 2004, toda a nossa preocupação com a indeterminação da presente lei, que permite que se confunda o ato desastrado e inábil, com o ímprobo, que traz na sua essência a devassidão e a imoralidade. É a mesma situação, em outras palavras, de enquadrar-se o ato probo, construído de boa-fé, como se ele fosse ímprobo.

 

            Deve, portanto, o aplicador da norma ter prudência e evitar que a utilização da lei em destaque seja de uma forma ampla, geral e irrestrita, direcionada para qualquer ato tido como ilegal. Esta não é e nunca será a vontade do legislador, que visa punir apenas o agente público ou o terceiro que desonrem e lesem ao erário de forma efetiva e consciente, tendo o elemento subjetivo do tipo o dolo, pois o direito atual não se identifica com os tempos da inquisição, onde ninguém tinha meios de saber se estava sendo acusado e menos ainda de que o acusavam.

           

            Partir-se do enriquecimento ilícito, do prejuízo ao ente público e da violação aos princípios da administração pública, contidos nos arts. 9º, 10 e 11, da Lei nº 8.429/92, sem deixar tipificado ante o entendimento do legislativo da conduta ímproba é de sobremaneira perigoso, pois a indefinição será a marca registrada que antecede aos citados tipos da lei de improbidade administrativa.

 

            Essa falha legislativa lembra as colocações combatidas por Henri Deroche, no sentido de que não se pode ter como premissa o seguinte fato, de que: “Las relaciones con la Administración se apresentan a nível como dialéctica del señor y del esclavo.”[12]

 

            A dignidade do agente público não pode ser violada indevidamente. Infelizmente a Lei nº 8.429/92 é falha, necessitando de integração de outra norma legislativa capaz de definir, objetivamente, o ato de improbidade administrativa. e não resta dúvida que tal tarefa compete ao legislador infraconstitucional, pois a CF (art. 37, § 4º) estabelece que serão combatidos os atos de improbidade administrativa, na forma e gradação prevista em lei.

 

            Assim sendo, como a citada falha é uma realidade, para se limitar o arbítrio do “soberano” intérprete da lei, há que se ter cautela na admissibilidade de ações de improbidade administrativa, que abarrotam o Poder Judiciário, dado o caráter aberto da norma em questão, que permite exatamente confundir-se um ato administrativo ilegal com o ato administrativo ímprobo.

 

            Destarte, conclui-se que o excessivo caráter aberto da citada lei permite a possibilidade de ser utilizada a ação de improbidade administrativa de forma irresponsável.

 

           

Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 2005.

 

 

MAURO ROBERTO GOMES DE MATTOS

mauro@gomesdemattos.com.br


 

[1] DO de 17.08.91, Seção I, p. 14.124

[2] A norma penal só gera conseqüência jurídica quando é clara e precisa, ou é conectada com outro comando legal afim de ter eficácia. Por isso, Fábio Konder Comparato, esclareceu: “A lei em branco, muito ao contrário, apresenta-se como norma de conteúdo incompleto, e cujo aperfeiçoamento só é alcançado mediante reenvio a outro diploma normativo, já existente ou a ser futuramente editado.” (COMPARATO, Fábio Konder. “Lei Penal em Branco: Inconstitucionalidade de sua Integração por Norma de Novel Infra-Legal – Os Crimes  de Perigo são Crimes de Resultado”, in Direito Público, Estudos e Pareceres, Saraiva, São Paulo, 1996, p. 269.

[3] Cf. SILVA, Juary C. Elementos de Direito Tributário, Saraiva, 1998, São Paulo, p. 63.

[4] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, traduzido por João Batista Machado, Ed. Martins Fontes, 1987, Porto Alegre, p. 60.

[5] LARENZ, Karl. cit. Ant., p. 305.

[6] COING, Helmut, Grundzügeder Rechtsphilisiphie, 3ª ed., 1997, apud LARENS, Karl. Derecho Justo, Fundamentos de Etica Jurídica”, traduzido por Luiz Díez-Picazo, Ed. Civitas, 1993, Madrid, p. 150.

[7] LARENZ, Karl, Derecho Justo, Fundamentos de Ética Jurídica, cit. Ant., p. 30.

[8] KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, tradução de João Baptista Machado, Ed. Martins Fontes, 1987, Rio Grande do Sul, p. 60.

[9] STF, Rel. Min. Celso de Mello, Ext. 633/CH, Pleno, DJ de 6.04.2001, p. 67.

[10] STF, Rel. Min. Celso de Mello, Ext. 633/CH, Pleno, DJ de 6.04.2001, p. 67.

[11] LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, traduzido por José Lamego, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª ed., Lisboa, p. 305.

[12] DEROCHE, Henri. Les Mythes Administratifs, 1966, Paris, p. 114, apud Jesús Gonzáles Peres, La ética en la Administración Pública, 2ª ed., Civitas, Madrid, p. 51/52.