MORALIDADE ADMINISTRATIVA COMO PRINCÍPIO JURÍDICO, CONCEITOS JURÍDICOS INDETERMINADOS E A DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA
DIREITO ADMINISTRATIVO
Ticiana Barbosa Vasconcelos - Estudante
A Constituição Federal de 1988 inseriu em seu texto a moralidade administrativa entre os princípios a que deve submeter-se a Administração Pública, in verbis:
Art. 37 – A Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Com efeito, a inclusão explícita da moralidade como princípio condicionante da Administração Pública, associada à improbidade administrativa e às competências do Ministério Público, entre as quais se encontra a defesa da moralidade e do patrimônio público, permitiu uma reflexão maior sobre a ética no Direito e a consequente investigação da moralidade como princípio jurídico.
Concordamos com a posição de Wallace Paiva Marins Júnior[1] quando afirma que a moralidade administrativa tem um maior grau de importância que os outros princípios relacionados no artigo 37 da Carta Magna, porque é pressuposto informativo dos demais, embora todos devam coexistir no ato administrativo.
A moralidade administrativa passa a ser um precedente lógico das atividades vinculadas ou discricionárias no âmbito de todo o Estado, incluindo, também, as atividades legislativas e jurisdicionais.
Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro[2], autores mais antigos acreditavam que o controle da moralidade deveria ficar adstrito ao âmbito interno da Administração por estar relacionado, exclusivamente, à disciplina interna. Assim, para estes autores, estaria excluída a apreciação pelo judiciário que controlaria, apenas, a legalidade dos atos da Administração e não a moralidade, restando o controle da moralidade, ao instrumento do processo administrativo.
Todavia, conforme leciona Celso Antônio Bandeira de Mello[3], um dos fortes princípios resolvidos em nosso Direito Pátrio, e com respaldo na Lei Magna, é que nenhuma lesão ou ameaça de direito poderá ser subtraída à apreciação do Poder Judiciário (artigo 5º, XXXV) – é uma garantia à ordem e à paz social.
Sabe-se, contudo, que é no âmbito da discricionariedade onde ocorrem as maiores práticas de atos eivados de imoralidade.
Rita Tourinho[4] aduz que a discricionariedade não pode ser entendida como um poder conferido ao administrador para agir de acordo com sua vontade. Ao contrário, a discricionariedade visa uma melhor satisfação ao interesse público em face da impossibilidade de o legislador prever todas as situações fáticas.
Celso Antônio Bandeira de Mello[5], por exemplo, aborda a discricionariedade como um dever do administrador, uma finalidade a ser cumprida e não sob o prisma de poder, como pretendem alguns doutrinadores ao entenderem a discricionariedade como uma liberdade conferida ao administrador que deve atuar dentro de um critério subjetivo desde que respeite as regras jurídicas.
Vivemos em um Estado Democrático de Direito, e entendemos que mesmo atuando no âmbito discricionário da Administração Pública, o agente não pode esquecer-se do mínimo ético vigente na sociedade, devendo agir, sempre, com honestidade, probidade e boa-fé.
Por outro lado, não podemos deixar de mencionar um tema que vem sendo bastante discutido e que é de grande relevância para o nosso trabalho, é o que os juristas denominam de conceitos jurídicos indeterminados que são aqueles que possuem vasto campo de significação necessitando de uma atividade interpretativa para se chegar ao seu real sentido. Por exemplo, a noção de interesse público, falta de probidade, boa-fé, entre outros, ou seja, são normas jurídicas ou princípios jurídicos que exprimem conceitos de valor e que poderão variar de acordo com o tempo e espaço.
Na doutrina brasileira existe uma corrente que considera que a moralidade administrativa integra o mérito do ato administrativo. Sérgio Ferraz e Adilson de Abreu Dallari[6] são alguns dos doutrinadores que fazem referência a este posicionamento.
Cumpre acrescentar que o conceito de mérito do ato administrativo explicitado por Hely Lopes Meirelles[7], com o qual comungamos, não apresenta qualquer distinção entre discricionariedade e mérito do ato administrativo. Assim, para Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari a moralidade só poderá ser resolvida, no campo da discricionariedade – o que entendemos ser um pensamento equivocado.
Corrente contrária, citada por Fernando Couto Garcia[8], e que busca inspiração em Eduardo Garcia de Enterría, defende que a moralidade administrativa não coincide com o mérito administrativo.
Esta última corrente representada, segundo o autor, pelos doutrinadores Florisvaldo Dutra de Araújo e Roberto Eros, reforça o entendimento de que o princípio da moralidade integra o campo dos conceitos jurídicos indeterminados, e que a aplicação desses conceitos não significa atribuição de discricionariedade[9].
Nesta mesma linha de raciocínio segue kele Cristiani Digo Bahena[10] ao afirmar que o princípio da moralidade, por ser um conceito jurídico indeterminado, trata-se de um “soldado de reserva” que precisa ser muito bem analisado para que sejam constatados possíveis atos de improbidade.
Há quem defenda que a aplicação de conceitos indeterminados, na hipótese de existência de mais de uma interpretação razoável, é aspecto discricionário[11].
Todavia, José Guilherme Giacomuzzi[12], seguindo as lições da Eduardo Garcia de Enterrá, a respeito do tema, elucida que foi em erro confundir a presença de conceitos jurídicos indeterminados nas normas que a Administração deve aplicar – como a norma do artigo 37, caput, da Constituição Federal -, com a existência de poder discricionário que é uma faculdade da Administração.
Rita Tourinho[13] afirma, com muita propriedade, que na esfera dos conceitos jurídicos indeterminados, existe somente uma solução justa na aplicação da norma a um caso concreto. Na discricionariedade, ao contrário, existe uma pluralidade de soluções justas, caracterizando um ato volitivo da Administração que se manifestará de acordo com a conveniência e oportunidade, ou seja, é a liberdade de escolha do administrador público.
Ao contrário, deparando-se com conceitos jurídicos indeterminados, Celso Antônio Bandeira de Mello[14] ensina que caberá entender-lhes o sentido através da atividade intelectiva e interpretativa, e, a decisão tomada deverá ser extraída da lei, obedecendo ao princípio da legalidade, visto que, a indeterminação dos conceitos jurídicos somente diz respeito ao seu enunciado e não a sua aplicação.
Comungamos com o pensamento do professor Fernando Couto Garcia[15] de que não há discricionariedade na interpretação do princípio da moralidade administrativa, exatamente pelo fato de que a moralidade administrativa, como princípio jurídico, apresenta-se como um conceito jurídico indeterminado.
Com efeito, em face da complexidade e da abertura das normas jurídicas, duas técnicas diferentes podem ser aplicadas pelo operador do direito – a utilização de conceitos indeterminados ou a discricionariedade do aplicador na norma. Na primeira técnica, a imprecisão presente na norma será solucionada por juízo de legalidade, com controle jurisdicional pleno, enquanto que na segunda, a imprecisão será resolvida por juízos de conveniência e oportunidade sem o controle jurisdicional.
Segundo Rita Tourinho[16], a maior dificuldade de controlar a Administração Pública através do princípio da moralidade, não é a identificação da moralidade da conduta, mas sim, a sua prova em juízo visando ao controle do Poder Judiciário.
Há quem defenda que não há possibilidade desse controle por entender que a moralidade integra o mérito das ações praticadas pelo agente público, e, levar tal conduta à apreciação do judiciário seria romper com o princípio da separação dos poderes.
Não temos a pretensão em defender, conforme já tivemos a oportunidade de esclarecer neste trabalho, que o princípio da moralidade elimine a discricionariedade da Administração Pública, a liberdade de escolha do administrador, visto que, algumas decisões devem ser resolvidas dentro do âmbito da Administração Pública.
Todavia, interpretar o ordenamento jurídico é a razão da existência do Poder Judiciário, sendo irrelevante, no nosso entendimento, saber se a atividade interpretativa é de intelecção ou volição, podendo, o julgador, concordar ou discordar, desde que motive a decisão.
Somente o judiciário sabe o momento em que deve por termo ao controle, ou seja, o momento em que o controle deixa de ser criterioso e fundado para se tornar arbitrário, desrespeitando o princípio da separação dos poderes.
E, ainda, conforme assevera Rita Tourinho[17], a crítica que os doutrinadores fazem à apreciação do princípio da moralidade pelo judiciário tenderá a desaparecer, pois, a partir do momento que a previsão da Carta Magna conferiu à moralidade administrativa o mesmo "status" da legalidade, o ato administrativo imoral será tão inválido quanto o ato administrativo ilegal.
Interessante, também, o pensamento do doutrinador Maurício Antônio Ribeiro Lopes[18] quando afirma que a moralidade não se confunde mais com os antigos conceitos básicos, onde não se admitia controle jurisdicional na discricionariedade. Modernamente, o critério da discricionariedade não permite mais o administrador dispor de amplos poderes para a gestão da coisa pública, mas, ao contrário, representa, sim, um poder, todavia, delimitado previamente pelo legislador.
Sabe-se que a não-aceitação do controle da atuação discricionária através do princípio da moralidade, seviu de pretexto, muitas vezes, para o arbítrio e para a má gestão dos negócios do Estado. Hoje, ao contrário, entendemos que se encontra ultrapassada a idéia de que a legalidade constitui o único limite à discricionariedade administrativa.
Ticiana Barbosa Vasconcelos – Estudante do 10º semestre do Curso de Direito das Faculdades Jorge Amado. Salvador-Bahia
Notas:
[1] MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade Administrativa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 31.
[2] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 15 ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 78.
[3] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17 ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 841.
[4] TOURINHO, Rita. Discricionariedade Administrativa. Ação de Improbidade e Controle Principiológico. Curitiba: Juruá, 2004. p. 76.
[5] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 15.
[6] FERRAZ, Sérgio; e DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 70; afirmam que o processo administrativo seria eficaz instrumento de defesa da moralidade, porque por ele o mérito do ato poderia ser revisto, o que pressupõe que a moralidade coincide com o mérito do ato administrativo.
[7] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 23 ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 136. Mérito administrativo não é propriamente requisito do ato, mas concorre para a sua formação e validade. Consubstancia-se na valoração dos motivos e na escolha do objeto em face da conveniência e oportunidade da Administração, só ocorrendo, portanto, na atuação discricionária.
[8] GARCIA, Fernando Couto. O princípio da moralidade administrativa. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em 01 de abril de 2005.
[9] GARCIA, Fernando Couto. O princípio da moralidade administrativa. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em 01 de abril de 2005.
[10] BAHENA, Kele Cristiani Diogo. O Princípio da Moralidade Administrativa e seu Controle pela Lei de Improbidade. Curitiba: Juruá, 2005. p. 168.
[11] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 86 e 118.
[12] GIACOMUZZI, José Guilherme. A Moralidade Administrativa e a Boa-Fé da Administração Pública: O Conteúdo Dogmático da Moralidade Administrativa. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 192.
[13] TOURINHO, Rita. Discricionariedade Administrativa. Ação de Improbidade e Controle Principiológico. Curitiba: Juruá, 2004. p.38.
[14] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 24.
[15] GARCIA, Fernando Couto. O princípio da moralidade administrativa. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em 01 de abril de 2005.
[16] TOURINHO, Rita. Discricionariedade Administrativa. Ação de Improbidade e Controle Principiológico. Curitiba: Juruá, 2004. p. 77.
[17] TOURINHO, Rita. Discricionariedade Administrativa. Ação de Improbidade e Controle Principiológico. Curitiba: Juruá, 2004. p. 77.
[18] LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Ética e Administração Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 50.