O CIGARRO NO BANCO DOS RÉUS

 

25/05/2006

Herez Santos

Bacharel em Ciências Náuticas & Direito;

Advogado no Rio de Janeiro  -  caphs@oi.com.br


A Deus.

 

"'Não tenhais medo dos homens, pois nada há de encoberto que não venha a ser revelado, e nada há de escondido que não venha a ser conhecido.' - Jesus Cristo, in Mateus, 10:26"

 

 

SUMÁRIO : Introdução - A Indústria do tabaco - Fatores & Hereditariedade - Epidemiologia - O cigarro - Razão de fumar - Males do fumo - Legislação federal - Convenção Quadro - Centros de informações - O cigarro no banco dos réus - Conclusão - Bibliografia.

 

INTRODUÇÃO

Os males que acometem não só fumantes ativos e passivos, mas também aquelas pessoas que de uma forma ou de outra mantêm contato direto e continuado com o tabaco, vêm gerando a um só tempo além de preocupação para a área médica em geral, acalorados embates jurídicos mundo afora. Assim tem sido nos Estados Unidos, no Canadá, na Austrália, e etc.

Na atual fase das discussões envolvendo questões relacionadas ao fumo e a saúde, verifica-se estar em curso a terceira leva de ações promovidas em face da indústria fumageira ( 1954-65, 1983-92, e 1994 em diante ). No Brasil, o número de casos trazidos às barras da justiça cresce continuadamente. A primeira ação judicial data de 1995, e, desde então, mais de 300 casos se sucederam .

Nesse contexto, a presente exposição é apenas, diga-se, uma despretensiosa síntese que não se faz exauriante do assunto e sequer almeja comparação com os trabalhos de alcance produzidos por alguns dos mais versados doutores que sobre o tema se debruçaram.

Evitando-se o mais possível digressões julgadas desnecessárias ou academicismos desmedidos, e buscando esquivar-se da melhor técnica disponível à formatação de textos, o discurso, na sua inteireza, pretende-se meramente informativo.

 

A INDÚSTRIA DO TABACO

A indústria fumageira é um oligopólio que fabrica, empacota, promove, distribui e vende cigarros e outros derivados do tabaco, e, alternativamente, presta em alguns casos assistência a terceiros a fazê-lo.

A grande maioria das empresas atuando no ramo do tabaco são subsidiárias de conhecidas transnacionais.

O Tobacco Institute Research Comittee - TIRC, ora operando sob a denominação de Council for Tobacco Research – CTR, órgão privado com sede nos Estados Unidos, é o porta-voz dos interesses das diversas empresas integrantes desse oligopólio.

No capítulo 2, do livro “ The Cigarette Papers “, de autoria do professor Stanton A. Glantz, da University of California, se constata o seguinte a respeito daquele instituto :

“Part of the industry`s response to the evidence linking smoking and disease was the formation of the Tobacco Industry Research Committee (TIRC), later renamed the Council for Tobacco Research (CTR). The industry claimed that TIRC was an independent organization that would determine the truth about the health effects of smoking by funding independent scientific research.

A política geral de mercado e a de relações públicas são ditadas pelo CTR, em nome do oligopólio. Por esta razão, os argumentos de fato levantados pelas vítimas americanas do fumo, por exemplo, validam-se em qualquer latitude. Quando se diz, v.g., que determinada empresa americana omitiu dados, por certo que a holding, subsidiária ou co-irmãs também o fizeram, qualquer que seja o país onde estejam estas instaladas.

Mantendo uma rede permanente de estudos relacionados ao fumo e suas conseqüências, constituindo farto e diversificado acervo de pareceres e estatísticas pertinentes ao assunto, reunindo experimentados consultores, e, por fim, padronizando procedimentos judiciais, o instituto, dentre outros préstimos, se coloca sempre ao lado da empresa fumageira, assistindo-a em qualquer foro legal onde esta figure no pólo passivo da ação em face dela aforada.

A esse respeito ainda, vejam-se os seguintes trechos extraídos dos autos de um processo promovido em face das tabaqueiras, nos Estados Unidos, e encontradiços na Internet, locus de domínio público, no endereço http://stic.neu.edu/Co/CO-ctrresp3-20-98.htm :

DISTRICT COURT, CITY AND COUNTY OF DENVER, COLORADO

Case No. 97-CV-3432, Division 3

STATE OF COLORADO, ex rel. GALE A. NORTON, ATTORNEY GENERAL, Plaintiff, v. ... THE COUNCIL FOR TOBACCO RESEARCH--U.S.A., INC.; and TOBACCO INSTITUTE…. omissis

In this action the State is suing the seven largest domestic tobacco companies, the foreign parent company of defendant Brown & Williamson (collectively the "Tobacco Companies") and two industry trade associations, CTR and the Tobacco Institute ("TI"), for violating the Colorado Consumer Protection Act ("CCPA") (§§ 6-1-101 through 307, C.R.S. (1997)), the Colorado Antitrust Act ("Antitrust Act") (§§ 6-4-101 through 122, C.R.S. (1997)), the Colorado Abatement of Public Nuisance Act (the "Public Nuisance Act") (§§ 16-13-301 through 316, C.R.S. (1997)) and the Colorado Organized Crime Control Act ("COCCA") (§§ 18-17-101 through 109, C.R.S. (1997)). … omissis

The Tobacco Companies also used CTR and TIRC to suppress competition for customers on the basis of health related claims. (Amended Complaint 55, 64). By manipulating public perception of the health risks posed by tobacco use and by serving as a single voice on behalf of the tobacco industry on issues concerning tobacco and health, CTR and TIRC enabled the Tobacco Companies to stop competing, as they historically had, on the basis of health claims. …

Vale observar que nas ações impetradas em face das fumageiras, além das demandadas se fazerem representar costumeiramente por sociedade de advogados, estas ainda contam com o apoio integral, senão irrestrito do CTR, o que muitas das vezes poderá implicar não só na transferência, por meio de assessoria jurídica promovida por expressivo número de advogados, da experiência forense acumulada ao longo de anos pelo CTR, como também na contratação de pareceres junto aos mais renomados doutores e versados peritos de cada área específica do saber.

No Brasil, a mais conhecida entidade representativa das tabaqueiras é a Associação Brasileira das Indústrias de Fumo - ABIFUMO. Fundada em 1979, está sediada em Brasília. As empresas a ela associadas atuam em diferentes áreas da cadeia produtiva, aí se incluindo as beneficiadoras de tabaco e as fabricantes de produtos derivados do tabaco - cigarros, cigarrilhas e charutos.

O enredo do filme “ The Insider “, interpretado por Russell Crowe, que por aqui recebeu o título de “ O informante “, envolve aspectos relativos ao modus operandi das tabaqueiras. Baseado em fatos reais, o filme narra o drama vivenciado por renomado cientista, ex-executivo de uma das grandes empresas de tabaco nos Estados Unidos, que resolveu por motivos de ordem pessoal e moral denunciar o que se passava nos bastidores da indústria. A denúncia foi matéria do programa da Tv americana, 60 minutes. A abordagem do filme valida sua menção.

 

FATORES & HEREDITARIEDADE

Fatores Ocupacionais. Um grande número de substâncias químicas usadas na indústria constitui um fator de risco de câncer em trabalhadores de várias ocupações. Quando o trabalhador também é fumante, o risco torna-se ainda maior, pois o fumo interage com a capacidade cancerígena de muitas das substâncias.

Fatores de Risco. O termo risco refere-se à probabilidade de um evento indesejado ocorrer. Do ponto de vista epidemiológico, o termo é utilizado para definir a probabilidade de que indivíduos sem uma certa doença, mas expostos a determinados fatores, adquiram esta moléstia. Os fatores que se associam ao aumento do risco de se contrair uma doença são chamados fatores de risco. Dois pontos devem ser enfatizados com relação aos fatores de risco: primeiro, que o mesmo fator pode ser de risco para várias doenças (por exemplo, o tabagismo, que é fator de risco de diversos cânceres e de doenças cárdio-vasculares e respiratórias); segundo, que vários fatores de risco podem estar envolvidos na gênese de uma mesma doença, constituindo-se em agentes causais múltiplos. O estudo de fatores de risco isolados ou combinados, tem permitido estabelecer-se relações de causa-efeito entre eles e determinados tipos de câncer. A multicausalidade é ocorrência comum na carcinogênese e pode ser exemplificada pela associação verificada entre álcool, tabaco e residência na zona rural, e o câncer de esôfago e entre álcool, tabaco, chimarrão, churrasco e o cozimento de alimentos em fogão de lenha, e o câncer da cavidade bucal.

Hereditariedade. São raros os casos de cânceres que se devem exclusivamente a fatores hereditários, familiares e étnicos, apesar de o fator genético exercer um importante papel na oncogênese. Um exemplo são os indivíduos portadores de retinoblastoma que, em 10% dos casos, apresentam história familiar deste tumor. Alguns tipos de câncer de mama, estômago e intestino parecem ter um forte componente familiar, embora não se possa afastar a hipótese de exposição dos membros da família a uma causa comum. Determinados grupos étnicos parecem estar protegidos de certos tipos de câncer: a leucemia linfocítica é rara em orientais, e o sarcoma de Ewing é muito raro em negros.

http://www.inca.gov.br

 

EPIDEMIOLOGIA

 

Epidemiologia é o estudo dos fatores que determinam a freqüência e a distribuição dos doenças nas coletividades humanas. Quando não, é também o ramo da ciência que estuda a distribuição das doenças e suas causas em populações humanas.

O objeto da epidemiologia são as relações de ocorrência de saúde-doença em massa, envolvendo um número expressivo de seres humanos, agregados em sociedades, coletividades, comunidades, grupos demográficos, classes sociais ou outros coletivos humanos.

 

O CIGARRO

A análise do cigarro como um todo, se dá a em duas fases, quer sejam, a gasosa e a particulada.

A análise da fase gasosa indica ser esta composta de substâncias tais como, monóxido de carbono, cetonas, formaldeído, acetaldeído e acroleína. Já a análise da fase particulada permite constatar a presença da nicotina e do alcatrão.

Substâncias cancerígenas, tais como, arsênico, níquel, benzopireno, e etc., se concentram na fase particulada.

A fumaça do cigarro contém cerca de 4.800 substâncias tóxicas, algumas inclusive radioativas.

A nicotina é classificada como droga psicoativa pela comunidade médico-científica. Comparada com as demais drogas conhecidas, a nicotina se mostra de efeitos tão ou mais vigorosos do que qualquer outra. Ela é capaz, entre tudo, de induzir a uma dependência profunda, subjugando o fumante ao vício e mantendo-o fortemente atrelado a ele. Por conta da dependência a que o fumante é levado, alguns inclinam-se a afirmar que a venda, na verdade, é de nicotina, sendo o cigarro apenas o veículo depositário que promove a entrega da droga ao organismo.

Atualmente, fala-se do fumo " Y2 ". Trata-se do fumo transgênico. Desenvolvido nos Estados Unidos, o fumo transgênico concentra mais nicotina, o que acaba por intensificar significativamente a dependência do fumante ao vício de fumar.

Segundo o que se nos informa o art. 8° do Codex de Consumo, perigosos por natureza são tidos aqueles produtos de que a coletividade não pode prescindir por serem indispensáveis ao bem-estar de cada um e de toda a coletividade. A partir dessa constatação, dir-se-ia que ninguém sustentaria que o cigarro se vê alcançado pela mens legis do citado regramento. Isso porque, o cigarro não é, diga-se, indispensável ao bem-estar de quem quer que seja.

Vale asseverar que é equivocado se tomar o vocábulo “ vício “ como sinônimo de “ hábito “. O fumante não tem hábito de fumar, diga-se ; fumar é um vício.

Tem-se notícia que a confraria de fumantes espalhada no mundo forma exército de um sem número de pessoas, homens e mulheres. A partir desse dado, fácil imaginar o excelente resultado de um negócio cujos clientes consomem compulsoriamente, porque feitos nicotino-dependentes, o produto disponibilizado no mercado a um preço acessível a qualquer um do povo.

A indústria tabaqueira sempre pesquisou e desenvolveu estudos, os mais diversos, sobre as conseqüências, ou melhor, inconseqüências, do fumo para a saúde.

Nos idos ainda dos anos 50`s, estudo médico-científico tornando público males atribuídos ao fumo, repercutiu desfavoravelmente na opinião geral. A partir desse fato, a concorrência entre as fábricas de tabaco se fez bastante acirrada. E em razão dessa acentuada competição, várias patentes de cigarros ditos "seguros" foram a registro nas mais diversas praças de comércio. Percebendo que o lançamento de produto menos agressivo à saúde iria agravar sobremaneira a credibilidade do cigarro que até então era posto à venda, além de fazer com que a concorrência entre as fábricas se tornasse predatória, o instinto de preservação prevaleceu e a indústria como um todo, então, retrocedeu, o que fez com que o “ cigarro seguro “, apesar de já desenvolvido e patenteado, jamais viesse ao mercado consumidor .

Sobre patentes de cigarros seguros, vale destacar o relatório do Imperial Cancer Research Fund - ICRF, de Londres, extraído da internet, no sítio http://www.rense.com/health/safersmokes.htm. Veja-se a transcrição in litteris :

“ Safer Cigarettes Patented But Were Never Made

BBC News - Sci/Tech - 3-5-99

LONDON - Tobacco firms could have produced safer cigarettes that would have cut the health risks of smoking and prevented thousands of deaths, researchers said on Wednesday.

A new report from the Imperial Cancer Research Fund (ICRF) and Action on Smoking and Health (ASH) showed the international tobacco industry had 57 U.S. patents approved for modifications that could have reduced the chemicals in cigarettes that cause cancer, heart disease and emphysema.

As patentes registradas também podem ser encontradas na Internet, bastando, para tanto, que se as rebusque. A título de exemplo, transcrevem-se os dados registrados de uma delas :

Fonte : The Patent Office

Número da Patente : CN1138436

Data da Publicação: 25/12/1996

Inventor : BAOJUN LIU (CN)

Requerente : LIU BAOJUN (CN)

Classificação :

internacional : A24B15/16

europeu :

Número do pedido : CN19960104873 19960509

Número da prioridade: CN19960104873 19960509

Apartadas as opiniões contrárias, que, diga-se, atribui-se-lhes o devido respeito, se infere da constatação acima que, havendo de há muito sido desenvolvido cigarro menos agressivo à saúde, mas que não chegou a ser disponibilizado no mercado consumidor por qualquer razão, se nos parece, concessa maxima venia, ter caído a máscara da indústria, restando claro que os produtos mantidos até hoje à venda, são, sem dúvidas, sob o enfoque da proteção e defesa do consumidor, para dizer o menos, defeituosos. E isso porque, salvo melhor exegese, arrisca-se a dizer, com base no que se infere dos arts. 9º e 10º do Código de Defesa do Consumidor, que o fornecedor estará proibido de fabricar um produto ou realizar um serviço com alto grau de nocividade ou de periculosidade se existir um outro produto ou um outro modus faciendi do serviço sem aquelas qualidades negativas.

Por seu turno, o art. 12, § 2° , do Código de Defesa do Consumidor, enuncia que "o produto não é considerado defeituoso pelo fato de outro de melhor qualidade ter sido colocado no mercado ". Logo, a contrário senso, dir-se-ia que havendo sido desenvolvido produto de melhor qualidade, mas que não chegou a ser disponibilizado no mercado, fica ressaltado o defeito daquele que, a despeito de tudo, continuou sendo ofertado ao consumidor. É o que se infere da inteligência do referido artigo.

Por analogia, os cigarros à venda no mercado são, por tudo, defeituosos, deduz-se.

Ante o esposado nos parágrafos anteriores, conclui-se que por trás da não substituição dos cigarros tradicionais por aqueles ditos seguros, deve, provavelmente, haver algum propósito inconfesso. Alguns especulam que a venda de cigarros sem nicotina, por exemplo, seria um fiasco, ainda que viessem a ser rotulados de cigarros seguros, eis que o grande negócio é exatamente a venda de "nicotina".

Confirma-se assim, ante a tudo, que a indústria sequer observou o princípio inato da boa-fé para com os consumidores de seus produtos.

Destaque-se, sobretudo, que também sob o enfoque da falta da adequada informação, dever lateral atrelado ao princípio da boa-fé, o cigarro deve ser encarado como produto defeituoso, eis que poucos são os consumidores que têm consciência de que a cada tragada estão a introduzir na corrente sanguínea, v.g. , polônio 210 e potássio 40, ambas, substâncias radioativas.

 

RAZÃO DE FUMAR

O conjunto de características humanas que não são inatas, e que se criam e se preservam ou aprimoram através da comunicação e cooperação entre indivíduos em sociedade “, é o que o léxico aponta significar o termo cultura.

Diz-se com proficiência que é sobre os produtos e serviços, em princípio dispensáveis, que se desenvolve a publicidade, com o intuito, exatamente, de despertar hábitos e vícios, disseminar condutas e criar expectativas, no sentido de vendê-los.

A história mostra que nos primórdios se repudiava o ato de fumar. A primeira obra contrária ao tabaco e de que se tem notícia, data de 1604 (Counterbast to Tobacco), escrita pelo rei da Inglaterra Jaime I (1556-1625).

A partir da industrialização do fabrico dos derivados do tabaco – charutos, cigarrilhas e cigarros, desenvolveu-se e se fez enraizar no seio da sociedade uma forte cultura tabágica. Fumar virou moda. Em pouco tempo a publicidade maciça e glamourosa se encarregou de tornar o cigarro um fetiche. Em posterior estágio, a publicidade se transmudou em propaganda já que se passou a anunciar à sociedade não mais um produto, mas sim uma idéia - o cigarro, como fetiche. Ora, consabido que o homem é produto do meio. Induzido, pois, por força da cultura tabágica e dos apelos formulados àquele fetiche, experimentado os primeiros cigarros, mas não muitos, o vício se implanta. Destarte, o cidadão transforma-se em consumidor compulsório e cativo de nicotina.

O livre arbítrio de escolha pressupõe o conhecimento integral pelo consumidor das circunstâncias inerentes a determinado produto, o que, sabe-se, não ser esse o caso em se tratando de cigarro, face, principalmente, a falha do fornecedor em prestar adequada informação ao pretenso nicotino-dependente, negando-lhe conhecer amplamente as substâncias processadas na tragada da fumaça do cigarro e todos os males que elas dão causa.

 

A indústria costuma alardear que o aderente ao fumo fê-lo porque quí-lo. Mas , como visto, data venia, não é bem assim que acontece.

E por que, então, poderia alguém perguntar, figurando alertas sobre os males do fumo nos maços de cigarros, as pessoas ainda assim se iniciam no fumo ? A resposta está, sem sombra de dúvida, principalmente, na cultura tabágica tão profundamente enraizada na sociedade pelas fumageiras. Isso explica porque nos países da cortina de ferro, ainda que ausente à época da guerra fria e por conta do regime o poder exercido pela publicidade comercial, nem por isso a cultura tabágica enraizada já no passado, deixou de levar pessoas ao vício de fumar.

 

MALES DO FUMO

Muito antes de ser tornar compulsória no Brasil a inserção de advertências sobre os riscos do fumo nos maços de cigarros, sabe-se, porque de domínio público, que os fabricantes de fumo , não o povo, já tinham ciência de que o consumo prolongado de tabaco promove o surgimento de câncer e outras tantas patologias, doenças prejudiciais à saúde humana.

A Organização Mundial de Saúde – OMS ( World Health Organization – WHO ) aponta o tabaco como a principal causa de mortes evitáveis do mundo.

O Boletim Informativo n° 9, de junho de 2001, ISSN 1518-6377, emitido e divulgado na Internet, locus de domínio público, pela ANVISA, órgão acreditado, enfatiza algumas das mazelas decorrentes essencialmente do consumo de cigarros, como se pode ver nos trechos a seguir transcritos :

“ Em nosso país, o tabagismo é a principal causa do crescimento de casos de câncer, por estar ligado a oito tipos da doença e responder, direta ou indiretamente, por cerca de 30% do total de mortes causados pela enfermidade ...

... No total, o cigarro está ligado à origem de tumores malignos em oito órgãos ( boca, laringe, pâncreas, rins e bexiga, além de pulmão, colo de útero e esôfago ) ” .

Na página da Phillip Morris Internacional na Internet, locus de domínio público - http://www.philipmorrisinternational.com , por seu turno, se pode tomar conhecimento do que publicamente confessa essa empresa, verbis :

“ Cigarette smoking causes lung cancer, heart disease, emphysema and other serious diseases in smokers. Smokers are far more likely than non-smokers to develop diseases such as lung cancer. There is no such thing as a "safe" cigarette “.

Em 1999, uma das advertências do Ministério da Saúde era a de que “ fumar provoca diversos males à sua saúde ”. Observe-se que a afirmação é categórica. Ali o fumo não é tido como fator de risco, mas sim como causa adequada ao surgimento dos “ diversos males “. Ora, fosse exagerada ou despropositada dita advertência, esta seria, por certo, questionada e , em ato contínuo, impedida de se a ver, por provocação da indústria, estampada nos maços de cigarro. Não o tendo sido, se é levado à concluir que dito alerta consolida-se como mais um fundamento a assegurar ao fumante a pretensão de ver reparado o dano que tiver experimentado.

O Ministro da Saúde dos Estados Unidos, Surgeon General, órgão prestigiado mundialmente, emitiu um novo relatório em 2004 . Como referência, vale destacar alguns trechos do que contém aquele documento de quase 1000 páginas.

The 2004 Surgeon General`s Report on the Health Consequences of Smoking was prepared by 19 of the country`s top scientists, doctors, and public health experts.

Smoking harmsnearly every organ of your body. It causes diseases and worsens your health.

Smoking causes cancer in organs throughout your body.

Em resumo, poder-se-ia ainda dizer que o mencionado relatório ressalta repetidas vezes que a evidência é suficiente para se inferir existir uma relação causal entre fumar e o surgimento de câncer ( em tradução livre ).

 

LEGISLAÇÃO FEDERAL

No Brasil, a legislação federal aplicada às questões relativas ao cultivo, fabricação e comercialização do tabaco e derivados é ampla sendo uma das mais avançadas legislações para o controle do tabaco.

Veja-se.

Portaria Interministerial n.º 3.257, de 22 de setembro de 1988, Lei n.º 9.294,de 15 de julho de 1996, Decreto n.º 2.018, de 1º de outubro de 1996, Portaria do Ministério da Saúde n.º 2.818, de 28 de maio de 1998, Lei n.º 10.167, de 27 de dezembro de 2000, Portaria Interministerial n.º 1.498, de 22 de agosto de 2002, Lei n.º 9.503 , de 23 de setembro de 1997 ( Código de Trânsito Brasileiro ), Lei n.º 10.167, de 27 de dezembro de 2000, Resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária n.º 15, de(17 de janeiro de 2003, Lei n.º 10.702, de 14 de julho de 2003, Lei n.º 8.069, de13 de julho de 1990 ( Estatuto da Criança e do Adolescente ), Lei n.º 10.167, de 27 de dezembro de 2000, Resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária n.º 304, de 07 de novembro de 2002, Lei n.º 10.702, de14 de julho de 2003, Portaria do Ministério da Saúde n.º 1.035, de (31 de maio de 2004, Portaria da Secretaria de Atenção à Saúde n.º 442, de 13 de agosto de 2004, Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988, Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990 ( Código de Proteção e Defesa do Consumidor ). Portaria Interministerial n.º 477, de 24 de março de 1995, Lei n.º 10.167, de 27 de dezembro de 2000, Resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária n.º 15, de 17 de janeiro de 2003, Lei n.º 10.702, de 14 de julho de 2003, Resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária n.º 199, de 24 de julho de 2003, Lei n.º 7.488 , de 11 de junho de 1986, Portaria Interministerial n.º 3.257, de 22 de setembro de 1988, Medida Provisória n.º 2.190-34, de 23 de agosto de 2001, Portaria Interministerial n.º 1.498, de 22 de agosto de 2002, Resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária n.º 335, de 21 de novembro de 2003, Portaria Interministerial n.º 1.034, 31 de maio de 2004, Decreto n.º 2.637, de 25 de junho de 1998, Lei n.º 9.782, de 26 de janeiro de 1999, Lei n.º 10.167, 27 de dezembro de 2000, Resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária n.º 46, de 28 de março de 2001, Resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária n.º 346, de 02 de dezembro de 2003, Instrução Normativa da Secretaria da Receita Federal n.º 396, de 06 de fevereiro de 2004, Decreto de 1º de agosto de 2003, Instrução Normativa da Secretaria da Receita Federal n.º 60, de (30 de maio de 1999, Decreto n.º 4.924, de19 de dezembro de 2003, Decreto n.º 2.876, de 14 de dezembro de 1998, Medida Provisória n.º 66, de 29 de agosto de 2002

 

CONVENÇÃO QUADRO

A Convenção Quadro é o primeiro tratado internacional de saúde pública. Foi desenvolvido, ao longo de quatro anos, a pedido dos 192 países membros da Organização Mundial da Saúde (OMS). Seu objetivo é “proteger as gerações presentes e futuras das devastadoras conseqüências sanitárias, sociais, ambientais e econômicas geradas pelo consumo e pela exposição à fumaça do tabaco”. O tratado entrou em vigor em fevereiro de 2005.

O Brasil ratificou a Convenção em 27 de outubro desse mesmo ano.

A adesão do país ao tratado pôs fim a uma acirrada disputa entre defensores da saúde pública, entre eles o INCA, coordenador do Programa Nacional de Controle do Tabagismo, e alguns setores da indústria do tabaco no Brasil

Quais as medidas propostas pela Convenção Quadro ?

Algumas das principais medidas visam :

a) reduzir a demanda por tabaco, com por exemplo a aplicação de políticas tributárias e de preços - proteção contra a exposição à fumaça do tabaco em ambientes fechados - regulamentação dos conteúdos e emissões dos produtos derivados do tabaco - divulgação de informações relativas a estes produtos - desenvolvimento de programas de educação e conscientização sobre os malefícios do tabagismo; proibição da publicidade, promoção e patrocínio; implementação de programas de tratamento da dependência da nicotina.

b) reduzir a oferta por produtos do tabaco, como por exemplo a: eliminação do contrabando; restrição ao acesso dos jovens ao tabaco; substituição do cultivo de tabaco; restrição ao apoio e aos subsídios relativos à produção e à manufatura de tabaco.

c) proteger o meio ambiente. d) incluir as questões de responsabilidade civil e penal nas políticas de controle do tabaco, bem como estabelecimento das bases para a cooperação judicial nessa área.

e) promover a cooperação técnica, científica e intercâmbio de informação, com: elaboração de pesquisas nacionais relacionadas ao tabaco e seu impacto sobre a saúde pública; coordenação de programas de pesquisas regionais e internacionais; estabelecimento de programas de vigilância do tabaco; e cooperação nas áreas jurídica, científica e técnica.

http://www.inca.gov.br

 

CENTROS DE INFORMAÇÕES

Informações relacionadas ao fumo estão disponíveis nos sítios mantidos na Internet, locus de domínio público, pelo Instituto Nacional do Câncer – INCA, pela Organização Mundial da Saúde – OMS, e pela Organização Pan-Américana de Saúde – OPS, dentre outros.

 

O CIGARRO NO BANCO DOS RÉUS

A segurança do consumidor é pressuposto para o fornecimento de produtos e serviços no mercado de consumo. Ante, pois, todas as evidências verificadas, fruto da experiência humana, poder-se-ia dizer, data venia, que nada além do abuso de poder econômico está a justificar a fabricação, fornecimento e comercialização de derivados de tabaco.

Uma ação tramitada no estado de Washington, nos Estados Unidos, ressaltava, dentre outros, os seguintes fatos em parte transcritos :

State of Washington v. American Tobacco Co. et al. (Complaint) SUPERIOR COURT OF WASHINGTON IN AND FOR KING COUNTY STATE OF WASHINGTON, Plaintiff, v. ... omissis

Case No. 96-2-15056-8 SEA

The State of Washington, through Attorney General Christine ... , Senior Counsel .... , and Special Assistant Attorneys General ... , on behalf of the State, brings this action for monetary damages, civil penalties, declaratory and injunctive relief, restitution, and other equitable relief. ... omissis

 

This case challenges a massive illegal conspiracy perpetrated by the defendant Tobacco Companies and the other defendants. That conspiracy includes a host of unlawful, unfair and deceptive acts, including without limitation the following: Publicly undertaking a supposedly "paramount" special duty to research and disclose to public health authorities and the public at large - including the State of Washington - the full extent of the health risks of cigarette smoking; but then suppressing and distorting the state of defendants` knowledge of those health risks; ... omissis

Creating and/or funding fraudulent "front" organizations -- such as the Tobacco Industry Research Council (later the Council for Tobacco Research) -- which were held out to the public as independent research organizations, but were in fact secretly controlled by the industry`s lawyers and public relations firms, and conspiring to prevent the public from learning what defendants knew about the health risks of smoking; ... omissis

The Tobacco Companies, as well as their public relations agents, lawyers and industry trade organizations have long known that their tobacco products contained large amounts of nicotine - a highly addictive substance - as well as numerous carcinogens and other harmful elements. They have further known that their products were addicting, extremely dangerous to the health of smokers, and would cause adverse health effects to virtually all persons who smoked them. ... omissis

The industry has secretly manipulated the level of nicotine in tobacco products in order to increase addiction and sell more product. ... omissis

Tobacco products kill, maim, and injure virtually all who use them. The Tobacco Companies know this, but continue to deny the existence of adverse health effects in their public statements. ... omissis

The intended and foreseeable effects of the conspiracy are several and far- reaching, including but not limited to, increased medical costs to others including the State of Washington, the use of tobacco products by minors in violation of state law, and the failure of the industry to develop and market "safer cigarettes" and other innovative products. ... omissis

A foreseeable and intended consequence of defendants` conduct has been to unjustly enrich the defendants at the expense of Washington`s health care system, the state health care authority, state workers` compensation funds, and ultimately, all Washington residents and taxpayers. ... omissis

Os Estados Unidos é o país onde, de há muito, mais se tem decidido em desfavor da indústria.

Não se diga que os males e prejuízos causados pelo fumo à sociedade americana não são semelhantes aos suportados pela sociedade brasileira. Válido aqui, pois, se avocar o dístico romano que enuncia "ubi eadem est ratio, ibi ide jus" - onde ouver a mesma razão, há de ser o mesmo direito.

Em excelente artigo intitulado “ o princípio da efetiva prevenção de danos ao consumidor “, encontradiço na Internet, locus de domínio público, o insigne Promotor de Justiça na Bahia, Dr. Aurisvaldo Melo Sampaio, com a sabença que demonstra lhe ser própria, entre outras coisas assevera :

a) o princípio da efetiva prevenção de danos ao consumidor se encontra inserto no art. 6°, VI , do Código de Defesa do Consumidor ;

b) a importância desse princípio da efetiva prevenção de danos avulta principalmente nas hipóteses em que há incerteza científica quanto à segurança, dado que nestes casos o consumidor age despido de qualquer cautela especial ;

c) por conta da expressão “ deveria saber ” contida no caput do art. 10° do Código de Defesa do Consumidor, não é dado ao fornecedor negligenciar essa incerteza e colocar o produto no mercado ;

d) havendo incerteza científica, ao fornecedor incumbe fazer prova cabal, absoluta, da inofensividade do produto, eis que a incerteza científica milita contra ele ;

e) não se impõe aos órgãos de defesa do consumidor fazer prova da periculosidade do produto, mas sim ao fornecedor provar a sua segurança, sob pena de ver-se impedido de introduzir aquele produto no mercado.

Aos defeitos decorrentes do fato do produto ou do serviço dá-se o nome de vícios de segurança.

Os argumentos empregados pela indústria em sua defesa processual são, em geral, os seguintes :

1) A fabricação e a venda de cigarros é atividade lícita e regulamentada pelo Poder Público ( obs. : atividade lícita de resultado ilícito não exime a reparação ) ;

2) Os riscos associados ao consumo de cigarros são há décadas de conhecimento do público, inclusive antes da veiculação das cláusulas de advertência ( obs. : somente recentemente a indústria reconheceu que o fumo " pode " ensejar vários males à saúde ) ;

3) Ausência de publicidade enganosa ( obs. : há registro de que a indústria chegou mesmo a prometer " o sucesso " em propaganda veiculada no pretérito ) ;

4) Os fumantes, ao optarem livremente pelo consumo de cigarros, assumem os riscos decorrentes de sua decisão, não podendo pretender responsabilizar o fabricante por ato consciente e de livre arbítrio ( obs. : não cabe falar em livre arbítrio se a cultura tabágica está fortemente implantada na sociedade, se por tantos anos veiculou-se o fetiche cigarro em maciça " propaganda ", e, finalmente, se aquele que deve decidir desconhece em sua inteireza o objeto sobre o qual haverá de recair sua decisão - 4.800 substâncias químicas e radioativas, todas tóxicas ) ;

5) Assunção de riscos ( obs. : o risco é da atividade econômica desenvolvida, não do consumidor ) ;

6) As doenças atribuídas aos cigarros são multifatoriais ( obs. : causas simultâneas ensejam responsabilidade solidária ) .

Nesse ponto, há que se destacar o fato de que, mesmo sendo do conhecimento do consumidor o vício do produto, a responsabilidade do fornecedor não restará afastada . Não fosse assim o legislador não teria assegurado o direito ao consumidor de, no prazo de 5 anos contados a partir do "conhecimento" do dano e de sua respectiva autoria, promover ação pelos danos decorrentes de fato do produto - art. 27 do Código de Defesa do Consumidor. Assim que, não importa se alertas vêm constando dos maços de cigarros. Havendo danos ao consumidor, a ordem jurídica assegura ao vitimado fumante, por 5 anos, o direito à pretensão de ver o dano que suportou reparado integralmente.

As muitas das diversas 4.800 substâncias de extrema nocividade presentes na fumaça do cigarro, são causas que, diga-se, “agem somente pela necessidade da sua natureza”. Sobrepõem-se, pois, a quaisquer outras, ainda que simultâneas.

Não se pode negar que a indústria do fumo desenvolve atividade lícita. Mas nem por isso, maxima venia, a ordem jurídica outorga a quem quer seja o direito de lesar outrem. Consabido que a responsabilidade civil nasce não só da prática de atos ilícitos, mas também da prática de atos lícitos que redundem em danos a terceiros.

Tome-se a título de exemplo, a fabricação e colocação no mercado consumidor de aparelho celular ( atividade lícita ), mas cuja bateria explode ( defeito ), lesionando o consumidor ( dano ). Ninguém sustentaria, na espécie, a ausência do dever de indenizar. O mesmo se dá com os derivados do tabaco. Apesar de lícita a atividade de fabricação e distribuição do fumo ( licitude ), o produto é defeituoso ( defeito ) e o desfrute deste, tal como previsto pelo fornecedor, dá azo a danos irreversíveis à integridade física do consumidor ( dano ). Assim, o ato a priori lícito, digas-se, se torna ilícito pelo resultado.

Destarte, por que, então, pergunta-se, as fumageiras haveriam de estar isentas de reparar ?

Nesse sentido, a prevalecer como quer a indústria, tal raciocínio simplista, mais apropriado ao leigo, todas as conseqüências ilícitas de atos a priori lícitos estariam imunes às regras da responsabilidade civil, o que é técnica e juridicamente inaceitável, diga-se.

Elaborada com o enfoque voltado a uma ampla e melhor defesa do consumidor, a Lei nº 8.078/90 não exclui, segundo o que vem preceituado no caput de seu art. 7º, a incidência da legislação interna ordinária. Válido, portanto, entre tudo, que se traga a lume o princípio informado pelos arts. 1.25,11.289 e 1.293 do novel Código Civil, segundo o qual o exercício de certos direitos deve implicar o dever de reparar o prejuízo que for daí originado.

Na preciosa lição que nos legou o douto Miguel Reale, faz este observar-se que, “ hodiernamente há progressivas exceções ao princípio de fonte romana que estabelece que quem faz uso de seu direito não causa dano a ninguém ( qui iure suo uititur alterum non laedere ), ora predomina a obrigatoriedade de ressarcimento, segundo o princípio geral do Direito que também remonta a fontes clássicas, e que estabelece que não se deve causar dano a ninguém ( alterum non laedere ) “ - Miguel Reale, Temas de Direito Positivo, RT 1992 - pág. 55.

Logo, sob qualquer viés que se enfoque a questão, verifica-se ilusório, diga-se, o argumento com o qual a indústria, salientando ser lícita a atividade que exerce, pretende expungir responsabilidade que lhe cabe.

Em outro giro, vê-se que, nos termos do parágrafo único do art. 927, da Lei n° 10.406/02, resta claro haver obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. Assim, ainda que se admitisse, para dar cor ao debate, ser o fumo apenas um fator de risco, já aí, entre todo o mais, se encontraria a base para a reparação daqueles a quem o cigarro vitima.

Em continuando, deve-se atentar para o fato de que, sendo os efeitos viciantes da nicotina e os males gerados pelo consumo de cigarros de há muito do conhecimento da indústria, silenciando e até negando tais efeitos e males, as fumageiras deixaram de observar a boa-fé e o dever de lealdade a esta atrelada, eis que entregaram os nicotino-dependentes consumidores à própria sorte. Esse proceder se equipara ao ato ilícito, gerando o dever de indenizar, independentemente até mesmo da existência de dano concreto. A mera violação de um direito subjetivo tutelado pela lei, a exemplo da sonegação da informação adequada, já enseja por si só reparação compulsória, mormente se o direito violado tiver sido instituído tendo em vista a preservação de atributo da personalidade ou da dignidade da pessoa humana ( art. 1º , III, da CF/1988 ), como é o caso da preservação da saúde.

Ora, dentre o mais, o caput do art. 4°, da Lei n° 8.078/90 prevê a transparência de conduta como princípio do vínculo entre o consumidor e o fornecedor.

Por conta da omissão e da negativa sustentada pela indústria em relação aos males provocados pelo fumo à saúde humana, John F. Kennedy em discurso proferido em Washington, em 12/09/1967, conclamou, verbis :

“As companhias de cigarro têm demonstrado uma total desatenção às suas responsabilidades públicas. Porém, é também uma reflexão para a nossa sociedade - para todos nós - que o cigarro tem sido permitido em vários países. Não há razão para uma outra geração da raça humana tornar-se vítima de morte prematura. Nós devemos agir, e agir agora“.

Data venia, por certo que toda aquela publicidade insidiosa veiculada pelas indústrias do fumo com o objetivo único de estimular a venda de cigarros incitou dúvidas no subconsciente do consumidor, induzindo-o a subestimar os malefícios do produto.

Enuncia o art. 187 da lei civil ora em vigor, que comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. O abuso de direito, sabe-se, é aferível objetivamente, prescindindo do dolo ou culpa, existindo este ainda que não se tenha verificado dano. Longe, portanto, de se querer alegar configurada a excludente do exercício regular de direito, vez que, se tanto, eliminaria tão só a ilicitude, e, por isso mesmo, relevante apenas em sede de responsabilidade subjetiva. E mais. Tratando-se de relação de consumo, despiciendo perquerir-se culpa.

Não bastasse o fato de o cigarro transmudar de fator de risco à causa quando sobrevindo qualquer dos efeitos maléficos que a comunidade médico-científica mundial quase que unanimemente a este atribui, não se desconhece que para fins de responsabilidade civil basta o risco ( art. 7º, caput, do CDC, c/c art. 931 do  C.Civil ), aliás, inerente este à própria atividade econômica desenvolvida pelos fabricantes de cigarros.

Diante das tantas patologias conhecidas atribuídas ao fumo, admitida, ainda que por hipótese, a tese sustentada pela indústria de ser o cigarro apenas um inocente fator de risco da eventual doença que o fumante tenha desenvolvido, o certo é que os produtos das tabaqueiras, ainda assim, por conta de sua natural agressividade sistêmica ao organismo humano, de alguma forma, compromete em maior ou menor grau, não importa, a saúde do consumidor tornado nicotino-dependente. Tal vínculo, pois, ainda que genérico, se faz bastante e suficiente para impingir reparação factível de ser aferida conforme as particularidades de cada caso concreto.

E mais. Mesmo se preexistente a doença, dir-se-ia que o fumo, por conta de suas intrínsecas características ( elementos químicos e radioativos os mais diversos ), sempre vem agravar o estado clínico do consumidor já doente, exsurgindo daí, por si só, o dever de indenizar. Irrelevante, por conta disso, discutir-se, pois, a origem da doença.

É, nesse sentido, de bom alvitre, além do mais, que reste salientado que o art. 7º do Código de Defesa do Consumidor, em seu parágrafo único, enuncia que "tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo".

O art. 333 do CPC prevê que o ônus da prova incumbe ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito. Em se tratando de lide decorrente de danos à integridade física do consumidor nicotino-dependente, porém, considerada a complexidade da questão sub judice e a hipossuficiência tecnico-econômica do Peticionário, a prova faz-se impraticável, eis que, in casu, se vê transposta a reserva do possível.

A defesa dos direitos do vitimado consumidor restará facilitada, entretanto, ante a inversão do ônus da prova. O art. 6º , VIII, informa, e o art.12, § 3º , do Código de Defesa do Consumidor assegura essa exceção de inversão do ônus da prova. Veja-se que, segundo o referido parágrafo desse artigo, “ o fabricante só não será responsabilizado quando provar ... “.

Se a prescrição prevista no art. 27 do Código de Defesa do Consumidor não tiver ainda operado, quer seja, se o aforamento da ação tiver se dado antes de decorrido o lapso temporal de 5 anos, contados estes desde o momento do conhecimento pelo consumidor do dano e sua autoria, o pleito poderá, sem dúvida, ser fundamentado nos regramentos da lex consumerista, o que provocará a inversão do ônus da prova por se tratar de acidente de consumo ( art. 12, § 3º do Código de Defesa do Consumidor ).

A doutrina e a jurisprudência já pacificaram, diga-se, a questão relativa à aplicação da Lei 8.078/90 à relação jurídica anterior à sua vigência e protraída no tempo. Não mais se a questiona.

Note-se, por último, que, segundo prevalecente opinio doctorum, nos casos de exposição a múltiplas substâncias tóxicas, sem que qualquer delas possa ser considerada causa exclusiva do dano, ainda mais estando presentes, além de tudo, inevitáveis fatores naturais que eventualmente possam ter concorrido para determinado resultado patológico, a questão relativa à causalidade necessária tem sido decidida com base na estatística, ou, como se preferir, em estudos epidemiológicos. A conexão entre o agente tóxico e o dano, entretanto, segundo ainda a balizada opinião dos doutos, poderá ser descartada se assim indicar o conjunto de provas servidas ao Juízo. Ressalva ainda o parecer doutrinário, anote-se, que a existência do fato contestado é mais provável do que sua inexistência .

 

CONCLUSÃO

_ Se encontra em curso a terceira leva de ações promovidas em face da indústria fumageira.

_ A indústria fumageira é um oligopólio.

_ O antes TIRC, ora denominado Council for Tobacco Research – CTR, é o porta-voz dos interesses das diversas empresas integrantes do oligopólio formado pelas fumageiras.

_ A fumageira demandada contará com espetacular aparato técnico-econômico em apoio à sua defesa.

_ A fumaça do cigarro contém cerca de 4.800 substâncias tóxicas, algumas inclusive radioativas.

_ A nicotina é uma droga psicoativa, sendo ela quem mantém o indivíduo preso ao vício.

_ O fumo transgênico é um fato.

_ Fumar não é hábito, é vício.

_ Existem patentes de cigarros ditos " seguros " registradas nas mais diversas praças de comércio.

_ O cigarro, ante o Código de Defesa do Consumidor, deve ser considerado, por várias razões, um produto defeituoso.

_ A pessoa é levada a aderir ao fumo basicamente por força da cultura tabágica que as fumageiras enraizaram no seio da sociedade.

_ A publicidade ou mesmo " propaganda " veiculada pelas tabaqueiras foi enganosa, eis que prometia " o sucesso " àqueles que o fumo, mais cedo ou mais tarde, acaba por vitimar .

_ A falta de informação adequada a respeito do produto não possibilita o livre arbítrio de escolha do consumidor.

_ Um fabricante de cigarro confessa em público, na Internet, e o Ministério da Saúde alerta que fumar provoca diversos males à saúde.

_ O relatório de 2004 do acreditado Ministro da Saúde dos Estados Unidos, Surgeon General, afirma categoricamente que a evidência é suficiente para se inferir existir uma relação causal entre fumar e o surgimento de câncer e outros males.

_ A legislação federal normatizando a atividade tabaqueira na sociedade brasileira é bastante ampla.

_ Não se impõe aos órgãos de defesa do consumidor fazer prova da periculosidade do produto, mas sim ao fornecedor provar a sua segurança, sob pena de ver-se impedido de introduzir aquele produto no mercado.

_ A atividade lícita que enseja danos a terceiros haverá de suportar a reparação.

_ O art. 927 do novel Código Civil enuncia que o risco dá azo por si ao dever de reparar.

_ É quase unânime mo seio da comunidade médica-científica que o fumo é a causa de vários males que acometem a saúde.

_ As substâncias tóxicas contidas no cigarro agravam a doença preexistente do fumante, fazendo exsurgir por si só o dever de reparar.

_ Em se tratando de ofensa produzida por causas simultâneas, instala-se a solidariedade.

_ Tratando-se de acidente de consumo, faz-se mandatória a inversão do ônus da prova .

_ Ante múltiplas causas, a existência do fato contestado é mais provável do que sua inexistência.

_ O Poder Judiciário é a vox juris do povo, esperança de realização dos valores do homem e da justiça, dogmas afirmados pela Constituição Federal de 1988 .

 

 

BIBLIOGRAFIA

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Martins, Plínio Lacerda, Anotações ao Código de Defesa do Consumidor, DP&A Editora.

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Simão, José Fernando, Vícios do Produto no Novo Código Civil e de Defesa do Consumidor, Ed. Atlas .

Sítios na Internet, do INCA, da OMS/WHO, etc., dentre tantos outros.