A REFORMA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

Ada Pellegrini Grinover

 

Sumário: 1 – Os valores fundamentais do processo penal moderno; 2 – O Código Modelo de Processo Penal para Ibero-América; 3 – A necessidade de reforma do sistema brasileiro; 4 – Os trabalhos de 1994 e de 2000; 5 – Os anteprojetos da Comissão: 5.1 – Investigação policial; 5.2 – Procedimentos; 5.3 – Prisão, medidas cautelares e liberdade; 5.4 – Efetividade da defesa. Interrogatório; 5.5 - Prova pericial, prova testemunhal e provas ilícitas; 5.6 – Suspensão do prazo prescricional; 5.7– Júri; 5.8 – Recursos; 6 – A divulgação dos anteprojetos e sua apresentação para críticas e sugestões.

1 – Já tivemos oportunidade de escrever que os valores fundamentais do moderno processo penal são o garantismo e a efetividade.Garantismo, visto tanto no prisma subjetivo dos direitos das partes, e sobretudo da defesa, como no enfoque objetivo da tutela do justo processo e do correto exercício da função jurisdicional. Efetividade, na visão instrumental do sistema processual, posto a serviço dos escopos jurídicos, sociais e políticos da jurisdição.

A técnica básica de que o processo penal da atualidade se utiliza, para a observância dos princípios maiores a que está pré-ordenado, reside na estrutura típica do modelo acusatório. Perfeitamente delineadas as funções do juiz, da acusação e da defesa (o que importa na abolição dos juizados de instrução), todo o processo se publiciza, condensa-se e concentra-se, ganhando em eficiência e exigindo a participação constante do juiz e das partes, na plena observância do princípio do contraditório e das garantias constitucionais.

A transparência, a desburocratização e a celeridade são corolários da estrutura acusatória adotada pelo novo processo penal. O mecanismo de seleção de casos e a adequação dos procedimentos à maior ou menor complexidade dos fatos e à gravidade da infração são outras técnicas que visam à maior eficiência. Tudo, ainda, marcado pela globalidade da reforma, que envolve aspectos administrativos e gerenciais dos órgãos da justiça penal e do pessoal de apoio, bem como o necessário instrumental técnico, imprescindíveis para a operacionalidade do sistema.

2 – Essas idéias, que impregnam o Código Modelo de Processo Penal para Ibero-América, serviram de base para a profunda reforma dos sistemas processuais de países como a Argentina, Guatemala, Costa Rica, El Salvador, Venezuela, Paraguai e para os projetos do Chile, Bolívia e Honduras, alimentando também reformas parciais no Brasil . E nas mesmas idéias fundaram-se as reformas dos códigos da Itália e de Portugal.

3 – O alinhamento de um número cada vez maior de países às idéias fundantes do Código Modelo aponta para a necessidade urgente de o Brasil adequar seu modelo processual penal às novas tendências, até porque muitos dos institutos do Código de Processo Penal de 1940 devem ser reestruturados de acordo com os princípios e as regras da Constituição superveniente, com os quais entraram em conflito. Disso também decorrem as dificuldades com uma jurisprudência, nem sempre sensível à tensão entre o velho e o novo. Por outro lado, o processo forjado em 1940, moroso, complicado, extremamente formal, não se coaduna com sua almejada efetividade, levando frequentemente à impunidade. É preciso mudar esse quadro.

Reforma, portanto. Mas quê reforma?

A reforma total teria a seu favor a completa harmonia do novo sistema. Mas seria inexeqüível operacionalmente. A morosidade própria da tramitação legislativa dos códigos, a dificuldade prática de o Congresso Nacional aprovar um estatuto inteiramente novo, os obstáculos à atividade legislativa de um Parlamento assoberbado por Medidas Provisórias e por Comissões Parlamentares de Inquérito, tudo milita contra a idéia de uma reforma global do Código de Processo Penal. Reformas tópicas, portanto, mas não isoladas, para que se mantenham a unidade e a homogeneidade do sistema; e reformas tópicas que não incidam apenas sobre alguns dispositivos, mas que tomem por base institutos processuais de forma a remodela-los completamente, em harmonia com os outros.

4 – Os juristas brasileiros já haviam trabalhado nessa linha de reformas em Comissão do Ministério da Justiça, presidida pelo Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, revendo propostas apresentadas por comissão anterior. Surgiram desse trabalho diversos anteprojetos de lei, que acabaram sendo desfigurados no Ministério da Justiça e assim encaminhados, em 1994, como projetos, ao Congresso Nacional, de onde o próprio Governo os retirou, a pretexto de aperfeiçoá-los.

Assumindo o Ministério da Justiça, José Carlos Dias, mediante o Aviso nº 1.151, de 29 de outubro de 1999, convidou o Instituto Brasileiro de Direito Processual a apresentar propostas de reforma do código de processo penal, para posterior encaminhamento ao Congresso Nacional. E, pela Portaria nº 61, de 20 de janeiro de 2000, o Ministro da Justiça constituiu comissão para, no prazo de 90 dias a partir de sua instalação, apresentar propostas visando à reforma do Código de Processo Penal brasileiro. A Comissão foi formada dos seguintes juristas do Instituto Brasileiro de Direito Processual:

    • Ada Pellegrini Grinover - presidente

    • Petrônio Calmon Filho - secretário

    • Antônio Magalhães Gomes Filho

    • Antônio Scarance Fernandes

    • Luiz Flávio Gomes

    • Miguel Reale Júnior

    • Nilzardo Carneiro Leão

    • René Ariel Dotti

    • Rogério Lauria Tucci

    • Sidnei Beneti

Em consonância com a Portaria, a Comissão apreciou os projetos apresentados pelo Ministério da Justiça em 1994, fruto do trabalho da comissão anterior, da qual oito dos membros da atual comissão participaram.

Seis anteprojetos já haviam sido apresentados ao Ministro José Carlos Dias, para ampla divulgação, quando se registrou seu pedido de demissão e a subseqüente nomeação para o cargo de José Gregori. Este, pela Portaria n.371, de 11 de maio de 2000, confirmou a comissão, prorrogando o prazo para a conclusão dos trabalhos por mais 90 dias. Enquanto isso, René Dotti houve por bem deixar a Comissão, na mesma oportunidade em que a Comissão da Reforma Penal se dissolveu, em solidariedade ao Ministro José Carlos Dias, tendo sido substituído, nos trabalhos da Comissão, por Rui Stoco.

A Comissão entregou ao Ministro Gregori mais cinco anteprojetos, perfazendo o total de onze.

5 – São os seguintes os anteprojetos apresentados: 1 – Investigação Policial; 2 – Procedimentos; 3 – Prisão, medidas cautelares e liberdade; 4 – Efetividade da defesa; 5 – Interrogatório; 6 - Prova pericial; 7 – Prova testemunhal; 8 – Provas ilícitas; 9 – Citação por edital e suspensão do prazo prescricional; 10 – Júri; 11 – Recursos.

Na verdade, como dito, os anteprojetos compõem um conjunto harmônico, remodelando institutos inteiros, sempre na preocupação da adequação das normas processuais à Constituição de 1988 e à Convenção Americana sobre os Direitos do Homem, a qual integra o ordenamento brasileiro, bem como na plena observância dos princípios do moderno processo acusatório, com ênfase à agilização dos procedimentos e com vistas à efetividade do processo.

5-1 – Profundas são as modificações introduzidas na investigação policial. Antes de mais nada, deixam-se perfeitamente caracterizadas as funções próprias da polícia judiciária, encarregada exclusivamente das investigações; do Ministério Público, destinatário da investigação, com atribuições de supervisão e controle; do juiz, imparcial e eqüidistante, para a concessão de medidas cautelares; da defesa, assegurada desde o momento em que o investigado passa formalmente à situação de suspeito; do ofendido, que pode exercer diversas atividades ao longo das investigações.

A agilização e simplificação das atividades investigativas concretizam-se pela manutenção do termo circunstanciado, para as infrações penais de menor potencial ofensivo; e, com relação às demais, pelo início das investigações pela via de apuração sumária, efetuada de forma singela e informal. Em 10 dias, a autoridade policial deverá remeter ao MP as informações obtidas, sem prejuízo de nelas prosseguir ou de iniciar outras entendidas necessárias, cujos resultados também serão enviadas ao parquet. O MP, à vista dos elementos encaminhados, poderá desde logo oferecer denúncia, promover o arquivamento ou requisitar a instauração do inquérito.

Mesmo o inquérito, reservado aos casos de investigações mais complexas, deverá reunir elementos informativos na medida estritamente necessária à formação da opinio delicti do MP e à concessão de medidas cautelares pelo juiz, não podendo esses elementos servir de fundamento para a sentença, com exceção das provas produzidas cautelarmente ou irrepetíveis, sobre as quais se estabelecerá o contraditório posterior.

Está prevista, sempre que possível, a utilização dos recursos de gravação magnética, esteotipia ou outra técnica similar, inclusive audiovisual, destinada à agilização e à maior fidelidade das informações.

Todos os atos praticados na fase de investigação devem ser motivados, sendo de 30 dias o prazo improrrogável para a conclusão do inquérito. Esse, como os demais prazos, ficam sujeitos à fiscalização de todos os interessados – MP, ofendido ou quem tenha qualidade para representa-lo, investigado ou suspeito (situações jurídicas bem diversificadas, substituindo-se o indiciamento pela atribuição formal do status de suspeito ao investigado, para que a partir daí, após a reunião de elementos informativos tidos como suficientes pela autoridade policial, lhe se assegurem as garantias constitucionais).

As mesmas regras aplicam-se às investigações destinadas à ação penal de iniciativa privada, para a qual se abre a legitimação às entidades previstas em lei para a defesa de interesses difusos ou coletivos.

Reservadas as medidas cautelares ao juiz, nenhuma interferência terá ele em relação à formulação da acusação ou à promoção do arquivamento, esta toda processada no âmbito do M.P., a cujo Órgão Superior fica conferida a fiscalização da atuação ministerial, com o devido controle do ofendido, homologando-a ou ordenando que outro representante da instituição ofereça denúncia.

Em conclusão, vale ressaltar que a proposta representa, sobretudo, uma tentativa séria e vigorosa de mudança de mentalidades, num desenho das funções institucionais que leva em conta o modelo acusatório e a necessidade de desburocratização da investigação policial.

5.2 – Os procedimentos também passaram por uma profunda revisão, buscando a celeridade e à defesa efetiva, observados os esquemas do processo acusatório. As técnicas que garantem o atingimento desses objetivos são: a) defesa do acusado antes do recebimento da denúncia ou queixa; b) possibilidade de absolvição sumária no momento do juízo de admissibilidade da acusação; c) recebida esta, os autos do processo serão instruídos apenas com as provas antecipadas, as cautelares e as irrepetíveis, desapensando-se as demais peças da investigação policial, entregues às partes e arquivadas em cartório; d) o juiz que receber a denúncia ou queixa e deferiu as medidas cautelares ficará impedido de presidir à instrução e prolatar a sentença, salvo nas comarcas em que houver um só juiz; e) procedimento oral, realizado em uma só audiência, com o interrogatório do acusado tomado após a produção da prova; f) alegações finais e prolação da sentença em audiência.

O procedimento comum será ordinário, sumário ou sumaríssimo, mantendo-se este para as infrações penais de menor potencial ofensivo. O procedimento sumário será adotado quando se tratar de crime punido com pena máxima não superior a 4 anos e o ordinário para os demais.

No procedimento sumário poderão ser arroladas até cinco testemunhas pelas partes e não se autoriza qualquer exceção à concentração dos atos numa única audiência. O procedimento ordinário permite que cada parte arrole até oito testemunhas e que, por exigência da complexidade dos fatos, as alegações finais e a sentença sejam elaboradas por escrito, observado em qualquer hipótese o princípio da identidade física do juiz.

Disposição expressa prevê a aplicação das normas atinentes à defesa anterior ao recebimento da acusação em todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não previstos no Código de Processo Penal.

O anteprojeto cuida, ainda, de estabelecer nova sistemática para a mutatio libelli, exigindo a rigorosa correlação entre imputação e sentença.

Finalmente, cumpre notar que as técnicas utilizadas visam a forjar procedimentos ágeis e concentrados, objetivando a eficácia do processo e a aplicação da lei penal e garantindo ao mesmo tempo a defesa efetiva.

5.3 – A sistematização e atualização do tratamento da prisão, das medidas cautelares e da liberdade provisória, com ou sem fiança, buscam superar as distorções produzidas no Código de Processo Penal com reformas sucessivas, que desfiguraram o sistema e, ao mesmo tempo, ajustá-lo às exigências constitucionais e colocá-lo em consonância com as modernas legislações estrangeiras, como as da Itália e de Portugal.

Nessa linha, as principais alterações da reforma projetada são: a) o tratamento sistemático e estruturado das medidas cautelares e da liberdade provisória; b) o aumento do rol das medidas cautelares, antes centradas essencialmente na prisão preventiva e na liberdade provisória sem fiança; c) a manutenção da prisão preventiva, genericamente, para garantia da instrução do processo e da execução da pena e, de maneira especial, para acusados que possam vir a praticar infrações de criminalidade organizada, de grave ofensa à probidade administrativa ou à ordem econômica ou financeira, ou mediante violência ou grave ameaça às pessoas; d) a possibilidade de o juiz substituir a prisão preventiva por prisão domiciliar em situações taxativas, bastante restritas, indicadoras da inconveniência ou desnecessidade de se manter o recolhimento em cárcere; e) a impossibilidade de, antes de sentença condenatória transitada em julgado, ocorrer prisão que não seja de natureza cautelar; f) a valorização da fiança.

No amplo leque de medidas cautelares diversas da prisão, proporciona-se ao juiz a escolha, dentro dos critérios de legalidade e proporcionalidade, da providência mais ajustada ao caso. Tais medidas cautelares, que poderão ser decretadas desde que o caso não seja de prisão preventiva, numa ordem progressiva de intensidade de obrigações impostas, são as seguintes: a) comparecimento periódico em juízo; b) proibição de acesso ou freqüência a determinados lugares; c) proibição de manter contato com pessoa determinada; d) proibição de ausentar-se do país; e) recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga; f) suspensão do exercício de função pública ou de atividade econômica ou financeira; g) internação provisória; h) fiança. Caso o investigado, suspeito ou acusado descumpra alguma das obrigações impostas, o juiz poderá substituir a medida por outra, impor outra em cumulação e, até mesmo, em último caso, decretar a prisão preventiva. A medida também poderá ser revogada ou substituída quando o juiz verificar a falta de motivo para que subsista.

Completam e uniformizam o sistema as regras sobre a liberdade provisória. As regras sobre a liberdade provisória ao preso em flagrante são as seguintes: o juiz que recebe o auto pode relaxar o flagrante, se ilegal; converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes seus requisitos; conceder liberdade provisória com ou sem fiança, ou com os demais vínculos acima indicados.

No que concerne à fiança, cabe realçar, dentre outros aspectos relevantes: a ampliação da possibilidade de a autoridade policial concedê-la, o alargamento de suas hipóteses de incidência, observadas as proibições constitucionais na matéria, a atualização de seus valores e a adequação da disciplina do quebramento.

Também se cuida, no anteprojeto, de fixar na sentença condenatória o valor provisório da reparação dos danos causados pelo crime, atendendo-se assim aos interesses da vítima.

A revogação dos artigos 393, 594, 595 e dos parágrafos do artigo 408 do Código de Processo Penal tem como objetivo assentar que toda prisão anterior ao trânsito em julgado da sentença condenatória somente pode ter caráter cautelar. A execução antecipada da sentença penal não se coaduna como os princípios garantidores do Estado de Direito.

5.4 – A defesa concreta e efetiva é um dos principais requisitos do devido processo legal. Sem o pleno exercício do direito de defesa, não pode haver processo e muito menos condenação. A defesa desdobra-se em defesa técnica e autodefesa, sendo a primeira sempre indisponível e a segunda, dispensável exclusivamente pelo suspeito ou acusado.

O primeiro anteprojeto cuida da defesa técnica, cuja ausência infringe a garantia do contraditório, e da defesa deficiente que, embora tecnicamente situada em outro plano, conduz ao mesmo resultado. Exige-se, pois, do defensor empenho na demonstração da tese da defesa mediante manifestação fundamentada.

O segundo anteprojeto trata do interrogatório, como momento no qual se concretiza de modo essencial a autodefesa. Segundo a moderna doutrina processual, o interrogatório, muito mais do que meio de prova (embora as afirmações do suspeito ou acusado possam constituir fonte de prova), é considerado meio de defesa. O tratamento do interrogatório no Código de Processo Penal é totalmente inadequado, vulnerando o direito ao silêncio, constitucionalmente assegurado, e o princípio segundo o qual a única presunção aceitável no campo penal é a de inocência, não podendo existir presunções contra o suspeito ou acusado.

Inovou-se, conseqüentemente, com relação às regras atinentes ao interrogatório, inclusive para desfazer uma série de controvérsias jurisprudenciais. As alterações foram propostas no sentido de: a) assegurar a presença de defensor no momento do interrogatório; b) proibir sua realização à distância quando o acusado estiver preso; c) cientificar o acusado do seu direito de permanecer calado; d) assentar que o silêncio não importa em confissão e tampouco pode prejudicar a defesa; e) separar claramente o ato do interrogatório em duas partes: a primeira sobre a pessoa do acusado (para o efeito, principalmente, de eventual individualização da pena) e a segunda sobre os fatos; f) garantir a participação das partes no interrogatório, para complementá-lo no que for pertinente e relevante; g) conferir às partes o direito de requerer novo interrogatório do acusado em pedido fundamentado.

5.5 – Dos três anteprojetos sobre provas, um cuida da prova pericial, tratando de simplificar e agilizar, de um lado, a produção de perícias, notadamente nas regiões mais distantes e desprovidas de recursos e, de outro, garantir às partes o mais adequado acompanhamento e o contraditório sobre a perícia produzida. Assim, reduz-se o número dos peritos oficiais a um só, em cuja falta a perícia poderá ser realizada por duas pessoas idôneas, preferencialmente escolhidas entre as que tiverem habilitação técnica; e faculta-se à acusação e à defesa, bem como ao ofendido, a indicação de assistente técnico e formulação de quesitos.

O segundo anteprojeto trata da prova testemunhal, objetivando a agilização dos procedimentos e a maior fidelidade possível dos depoimentos, na medida em que se possibilita seu registro até mesmo por meios audiovisuais. A imediação do juiz com as provas e com as partes, e destas com as provas e o juiz, demanda que as perguntas sejam formuladas diretamente às testemunhas, seguindo a técnica da cross examination, cabendo ao juiz indeferir aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.

Finalmente, era preciso disciplinar as provas obtidas por meios ilícitos, cuja admissibilidade é vedada pelo art.5, inc.LVI, da Constituição Federal. Com base na doutrina e na jurisprudência, conceituam-se elas como as colhidas em violação a princípios e normas constitucionais e se determina seu desentranhamento do processo e arquivamento sigiloso em cartório, caso venham a ser introduzidas nos autos. Também se impede que o juiz que delas tenha tido conhecimento profira a sentença. Deixa-se em aberto a aplicabilidade, ou não, do princípio da proporcionalidade, que no Brasil ainda carece ser mais trabalhado pela doutrina e pela jurisprudência, mas se estabelece a inadmissibilidade das provas ilícitas por derivação, de acordo com a teoria dos "frutos da árvore envenenada", com as cautelas aceitas pela jurisprudência norte-americana: ou seja, a inadmissibilidade fica restrita aos casos em que fique evidenciado o nexo de causalidade entre as ilícitas e as lícitas e quando se verificar que as derivadas não pudessem ser obtidas senão por meio das primeiras.

5.6 – Outro anteprojeto visa a aperfeiçoar, não só tecnicamente, mas também do ponto de vista prático, a redação do art.366 do Código de Processo Penal. No aspecto técnico, objetiva-se superar a falha consistente em ter-se como suspenso o processo ainda não completamente formado. Quanto ao prático, pretende-se solucionar os pontos controvertidos, quais sejam: a) o referente à situação do acusado que, para não comparecer, se furta propositadamente ao recebimento da citação inicial, aplicando ao caso a citação por hora certa; b) a fixação do prazo da suspensão do lapso prescricional, observado o máximo da pena privativa de liberdade cominada em abstrato; c) a atribuição, com exclusividade, ao juiz da ordenação da produção antecipada de provas; d) a presença do M.P. e de defensor nomeado para o acusado na produção das provas antecipadas; e) a definitiva formação do processo, efetuada a citação por edital, somente quando do comparecimento do acusado em juízo, defendendo-se efetivamente.

5.7 – O júri também passou por profundas modificações, a começar pelo procedimento perante o juiz singular. Seguindo o modelo do procedimento comum, sumário ou ordinário, que prevê o contraditório antes do recebimento da denúncia, o juiz preparador deverá necessariamente determinar a inquirição de testemunhas, até o máximo de 5 para cada parte, e o interrogatório, além da realização das diligências requeridas pelas partes, e só depois, fundamentadamente, decidir sobre a admissibilidade da acusação. Recebendo a denúncia, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou participação. Não se convencendo, impronunciará o acusado. Poderá, ainda, absolver sumariamente o acusado.

Na pronúncia, o juiz não fica adstrito à classificação do crime, atendendo-se às regras sobre a mutatio libelli.Reduz-se a influência que a motivação da pronúncia possa exercer sobre os jurados.

Pronunciado o acusado, proceder-se-á ao desentranhamento dos autos da investigação policial, com exceção das provas antecipadas, cautelares ou irrepetíveis, exatamente como ocorre nos procedimentos comuns, ordinário e sumário. Na técnica descrita, ressalta a desnecessidade de libelo, devendo os autos, após a preclusão da decisão de pronúncia, ser remetido imediatamente ao Tribunal do Júri, com o que se ganha em celeridade e eficiência.

A preparação do processo para julgamento em plenário é simples e rápida, mas revela momento extremamente importante, pois prevê a deliberação do Juiz Presidente sobre a realização de diligências para sanar nulidades ou esclarecer fato que interesse ao julgamento da causa. É nesse momento que o juiz fará o relatório do processo e não em plenário, sendo esse relatório uma das peças obrigatoriamente remetidas aos jurados com o expediente de convocação, com o que se permite o conhecimento antecipado da causa.

Com relação ao plenário, democratizam-se as regras sobre o alistamento dos jurados e se prevê a exclusão da lista geral, pelo prazo de dois anos, daquele que tiver integrado o Conselho de Sentença no ano anterior. É suprimido o recurso contra a decisão (administrativa) que incluir jurado na lista geral ou desta o excluir. Modernizam-se as normas sobre escusas de jurados. Estes têm mais liberdade e oportunidade de participação, permitindo-se-lhes examinar os autos a qualquer momento e não apenas na sala secreta.

Aperfeiçoam-se as regras sobre o desaforamento, que também poderá ser determinado, em razão de comprovado excesso de serviço, a pedido do acusado, ouvida a parte contrária, se o julgamento não puder ser realizado no prazo de 6 meses, contados do trânsito em julgado da decisão de pronúncia e garantida ao acusado, na hipótese de não haver excesso de serviço, o requerimento ao Tribunal de segundo grau de imediata realização do julgamento.

Toda a instrução será feita em plenário, onde se proíbe, como regra, o uso de algemas. Prevê-se a realização do julgamento sem a presença do acusado que, em liberdade, pode exercer a faculdade de não comparecer, como corolário do direito ao silêncio. A prisão provisória, que era regra, converte-se em exceção, de modo que a exigência do acusado solto em plenário como condição de julgamento já não se harmoniza mais com o sistema.

O questionário é simplificado ao máximo, devendo os quesitos ser formulados na seguinte ordem: a) materialidade do fato; b) autoria ou participação; c) se o acusado deve ser absolvido ou condenado. No caso de condenação: d) se existe causa de diminuição alegada pela defesa; e) se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena, reconhecidas na pronúncia. Uma série de normas didáticas, sobre o encaminhamento dos quesitos, visa a evitar nulidades, tão comuns nesse campo. São mantidas a incomunicabilidade dos jurados e a sala secreta.

O Juiz Presidente, no caso de condenação, fixará a pena base, considerará as circunstâncias agravantes ou atenuantes alegadas nos debates, imporá os aumentos ou diminuições de pena em atenção às causas admitidas pelo júri e observará o disposto no artigo 387, no que for cabível. Suprime-se o Protesto por Novo Júri.

A reforma proposta visa sobretudo à agilização, descomplicação e racionalização dos processos de competência do Tribunal do Júri, reforçando a prova produzida perante o Conselho de Sentença, sem descuidar das garantias do acusado.

5.8 – O anteprojeto sobre recursos objetiva, também, sua racionalização e agilização. A apelação caberá das sentenças, assim entendidas as decisões que encerram o processo, com ou sem julgamento do mérito. Todas as decisões interlocutórias, definidas como as que não encerram o processo, serão recorríveis de agravo. E permanece a irrecorribilidade dos despachos de mero expediente. Os recursos serão sempre voluntários, ressalvada a peculiaridade do procedimento dos embargos infringentes.

O agravo será retido, salvo nos casos de instrumento, taxativamente previstos.. O agravo retido terá apenas efeito devolutivo e o de instrumento também terá efeito suspensivo nos casos em que, a critério do juiz e sendo relevante a fundamentação do pedido, da decisão possa resultar lesão grave ou de difícil reparação. Norma de organização judiciária poderá instituir órgão do tribunal, com competência funcional, para decidir sobre a admissibilidade do agravo de instrumento e quanto ao efeito suspensivo, bem como sobre a recorribilidade de suas decisões. Mantém-se a regra da interposição do agravo perante o juiz de primeiro grau, mais consentânea às peculiaridades das causas penais.

As principais mudanças com relação à apelação são as que dizem respeito à prisão: a apelação da sentença terá efeito suspensivo, podendo o juiz decidir, fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, a imposição de prisão preventiva ou outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento da apelação. Revoga-se o dispositivo que prevê a deserção da apelação em caso de fuga. Além disso, transmudam-se para o campo penal as regras sobre a extensão e a profundidade da matéria devolvida ao conhecimento do tribunal fixadas no Código de Processo Civil.

Abolido o Protesto por Novo Júri, dá-se tratamento inteiramente novo ao procedimento recursal dos embargos infringentes, mantida a hipótese de cabimento no caso de decisão não unânime, na apelação ou no agravo, desfavorável ao acusado. Esta decisão não terá eficácia enquanto não for complementada pelo julgamento dos embargos infringentes, que deverá vir no prazo de 10 dias, independentemente de recurso, garantida às partes a apresentação de razões.

Os embargos de declaração sofreram mudanças terminológicas, aderentes aos ensinamentos da doutrina, seguindo a técnica utilizada no Código de Processo Civil, inclusive em relação à interrupção do prazo para a interposição de outro recurso por qualquer das partes, mas sem a incidência da multa, incompatível com o sistema penal. Assenta-se que os embargos poderão ter efeito modificativo, exclusivamente na medida do esclarecimento da obscuridade, da eliminação da contradição ou do suprimento da omissão, o que é pacífico hoje na doutrina e na jurisprudência cível.

Finalmente, a revisão criminal e o hábeas corpus, cujas disposições ficaram inalteradas, exceto no que se refere à inserção da intimação da designação da sessão de julgamento neste último, são corretamente inseridas no Título III, intitulado "Ações de Impugnação", do Livro III, que passa a chamar-se "Das nulidades, dos recursos e das ações de impugnação".

6 – Aí está, em apertada síntese, a proposta de reforma do Código de Processo Penal, apresentada pela comissão indicada na parte inicial deste trabalho. Cabe agora aos operadores do direito e à sociedade em geral examiná-la, apreciá-la, criticá-la, debatê-la e oferecer sugestões, contribuindo para seu aperfeiçoamento. Tudo no intuito comum de dotar o Brasil de instrumentos modernos e adequados, na ótica de um processo que deve assegurar, com eficiência e presteza, a aplicação da lei penal, realçando ao mesmo tempo as garantias próprias do modelo acusatório.

 

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